quarta-feira, 19 de junho de 2019

O OBJETO DIRETO E O PEIDO PEDAGÓGICO

O OBJETO DIRETO E O PEIDO PEDAGÓGICO



Movido a excesso de cafeína e furor pedagógico, estava eu obstinado a aproveitar até o último momento de minha aula, algo que ia contra a motivação discente que, por sua vez, não via a hora de ouvir o sinal do intervalo para sair em disparada como manada de gnus.
O tema da aula era o objeto direto, aquela porção, punhado de palavras, enunciado ou pedaço de oração que completa o sentido de um verbo transitivo direto, que, por sua vez, pede complementação. Traduzindo o que falei, grosso modo, o verbo “comprar”, por exemplo, é transitivo direto, primeiro porque quando você diz “comprei”, fica a dúvida “o quê?”. Segundo que essa dúvida é um indício da necessidade de objeto. Então, você pergunta “comprei o quê?” e responde “uma bola”, pronto, eis aí o seu objeto direto. Agora, se esse objeto vier precedido de preposição, temos um caso de objeto indireto. Esse caso dá pra perceber logo na pergunta ao verbo, quando você diz “gostou de quê?”, e a resposta “gostei de você” - objeto indireto: “de você”.

Pois bem, estava eu em uma aula sobre esse assunto, quando um aluno levanta o braço, animando minha expectativa docente.

- Professor, falta 3 minutos? – puxa que decepção, pensei. Estava tão empolgado achando que era uma pergunta sobre a aula e era apenas uma pergunta motivada pela ansiedade pré-intervalo.

- E daí? Nós vamos quando o sinal bater. Não é essa a regra? Vamos fazer o seguinte: alguém me explica agora a definição de objeto direto e dá exemplo e eu solto todo mundo – disse isso me sentido como Caronte à beira do rio Estige.

Silêncio... pensei até ter ouvido grilos no fundo da sala.

- E então, turma?

- Ah, ô professor, cê não vai soltar...?

- Peraê! Para tudo! – aproveitando a pergunta do garoto, resolvi transformar aquela ansiedade em aula - Há uma zona cinzenta nessa tua pergunta.

- Como assim?

E tomando fôlego continuei: - Cê não vai soltar o quê? Posso soltar o prisioneiro, posso soltar pipa, posso soltar a voz, posso soltar a franga, posso até soltar... UM PEIDO!

A gargalhada tomou conta da sala. Nisso, o sinal bateu. Todos correram como maratonistas em final de prova para o famigerado intervalo. A gritaria foi geral.

Uma pena, mais um pouco e eu tinha mesmo soltado um “peido pedagógico” para exemplificar o conceito ensinado. Afinal, toda a estratégia é válida, não é mesmo? Fazer o quê? Fica pra próxima aula. Assim aproveito para incluir mais ovo e repolho no planejamento.


(Profirmeza – 19/06/2019)

sábado, 1 de junho de 2019

O GRITO DO IPIRANGA - O DESPERTAR DE PIATÃ (PEÇA DE TEATRO)

O GRITO DO IPIRANGA – O DESPERTAR DE UBIRATÃ (Peça teatral)
por André Luiz Raphael
(Profirmeza)

OBRA PREMIADA EM CONCURSO NACIONAL, PROMOVIDO PELO MINISTÉRIO DA CULTURA EM JULHO DE 2018.

ATENÇÃO: Qualquer referência a esta obra deverá ter a seguinte informação:
Obra premiada no EDITAL DE SELEÇÃO PÚBLICA Nº 01, DLLLB/SEC/MINC DE 04 DE JULHO DE 2018, Prêmio de Incentivo à Publicação Literária, 200 Anos de Independência, realizado pelo DLLLB.



PERSONAGENS

PEDRO - ADOLESCENTE JOCA - ADOLESCENTE BETO - ADOLESCENTE
TUPÃ - (PROFESSORA EDNA)
ANHANGÁ - (PERSONIFICAÇÃO DO MAL E DA MORTE)
MÃE DE PEDRO
MELISSA - EX-NAMORADA DE PEDRO JORNALISTAS (VOZ EM OFF 1, 2 e 3) REPÓRTER
VIGIA 1
VIGIA 2
MAPINGUARI 1
MAPINGUARI 2
MÚSICOS PERCUSSIONISTAS (de 6 a 8 pessoas)

Cenário: O ambiente cenográfico é construído a partir do palco italiano. Ao fundo, em um telão, serão projetadas, ao longo do desenrolar da peça, imagens referentes ao acervo iconográfico e documental do museu do Ipiranga, assim como, imagens que remontem a construção da memória da Independência e de todos os momentos referentes à história da nação brasileira que possam ser associados a ideia de liberdade, independência, conquista, progresso e vitória, tais como: a abolição da escravatura, a Constituição Brasileira, a construção de Brasília, a modernização do país, a criação das universidades públicas, a música de Chiquinha Gonzaga, as invenções de Santos Dumont, as descobertas de Carlos Chagas e Oswaldo Cruz entre outros momentos importantes da trajetória social, histórica e cultural do Brasil. O proscênio deve estar livre para o desenvolvimento das cenas, ao centro deve haver uma pequena mureta, em ruínas, com pichações e palavras desconexas, ao fundo, um espaço deve ser reservado para as projeções no telão. Nos cantos direito e esquerdo do palco, a cenografia deve caracterizar tais espaços com obras que transmitam a ideia de acervo de museu. A iluminação deve adotar tons que remetam a ideia de envelhecimento, amadurecimento, porém, com uma semiótica de cores que recorram a ideia de conflito interno, busca de respostas e sabedoria. Já a sonoplastia deve basear-se em músicas clássicas e do cancioneiro popular, preferencialmente, de compositores brasileiros, tais como Chiquinha Gonzaga, Carlos Gomes, Villa Lobos entre outros.

ÉPOCA: Atual e contemporânea; LUGAR DA DRAMATURGIA: São Paulo (Capital) - Praça da

Independência e Museu do Ipiranga.


PRIMEIRO ATO

Tarde da noite. As luzes se acendem, mas o palco está vazio e iluminado com uma opaca penumbra funesta. No telão, uma imagem atual do museu do Ipiranga com a faixa de interdição é projetada. Outros avisos como “Não ultrapasse a faixa! Risco de queda de revestimentos!” e “Fechado para ações de prevenção contra a febre amarela silvestre” devem compor a cena. Segue uma voz, em off, narrando uma notícia sobre o fechamento do museu para reforma e restaurações para o bicentenário da Independência.


CENA I

(Voz em off 1,2 e 3 – jornalistas; Pedro, Beto e Joca)

VOZ EM OFF 1 Hoje, agosto de 2013, após a análise criteriosa de vários profissionais e engenheiros, a diretoria do museu paulista, também conhecido como “Museu do Ipiranga”, anunciou que, devido aos resultados apontados pelo laudo e pela perícia técnica, o museu fechará às portas para um intenso processo de reforma e restauração. O parque da Independência também foi interditado após a morte de um macaco com febre amarela. De acordo, com a equipe administrativa, mantenedora da instituição, o orçamento da reforma está estimado entre 80 a 100 milhões de reais e a conclusão da obra está prevista para 2022 – ano das comemorações dos 200 anos da Independência.

VOZ EM OFF 2 Extra! Extra! Museu do Ipiranga fecha as portas para a reforma!

VOZ EM OFF 3 Central de notícias informa: após morte de macaco com febre amarela, parque da Independência fica interditado até segunda ordem! Central de notícias! Cobertura total dos fatos em tempo real!


Ao término da narração, três jovens entram em cena sorrateiramente e verificam se estão sozinhos no recinto. Diante da confirmação dessa hipótese, começam a pichar a mureta improvisada com expressões e gírias típicas da juventude. Assim que iniciam a pichação, a composição “O guarani”, do maestro Carlos Gomes, compõe a cena como fundo musical. Um dos adolescentes, Beto, escreverá a palavra “Brazil”, enfatizando a letra “Z”. Os outros escreverão outros termos. É importante que haja erros de português nos escritos para auxiliar na construção da argumentação cênica que será desenvolvida a seguir. Ao término de cada pichação, cada pichador deve comemorar com um gesto típico do universo adolescente e juvenil, tais como: passinhos de dança e cumprimentos comuns dessa faixa etária, assim que a música terminar.


PEDRO (Com pose de orgulhoso) É isso aí parça! A gangue dos dogs marca novo território!

BETO Grande coisa! Trocaria tudo por um X-burguer e um belo rolezinho no shopping! E pensar que eu troquei as gatinhas por esse programa sem noção!

JOCA Estamos invadindo, pichando, correndo risco de pegar dengue e, o pior de tudo…

(impaciente) Só tem cuecas aqui! Cadê as mina, pô!

BETO É Febre Amarela, mano!

JOCA Ah, tanto faz! Dá na mesma! Dengue, Cólera, Lepra… É tudo a mesma coisa, cara! Para de causar “pobrema”!

BETO Ô animal! É pro-ble-ma! Quem fala “pobrema” tem dois problemas! Faltou das aulas de Português é?

JOCA Que mané aula de portuguêis o quê, brou! Nem sei por que tenho que ter aula de uma língua que aprendi desde que nasci, pô! E quer saber, a dona de português enchia tanta a lousa de regras que parecia mais que ela tava é falando grego! E quando não era isso, era um tal de ler texto daqui, gênero textual dali! O único gênero que me interesso é o gênero feminino! Morô!

BETO Então tá! Diz isso pro ENEM valeu! Vixe! Que tirada! Essa foi ótima!

JOCA Ah, vai se catar, cara! E você que escreveu “Brazil” com “Z”. Quer ser o bonzão e faz um erro podre desses! Que “zu-mento”! Que “zu-mento”! Nooooooossa! Depois dessa, cuspia no chão e saia nadando! (Olha pra Pedro para ver se o garoto lhe apoia na zoação, mas Pedro está entretido observando os arredores e nem presta atenção na conversa).

BETO Jumento é você! Fala aí, senhor “a gente temos”! Nem pra colar na prova cê presta! Tibum!

JOCA Pelo menos, eu não sou nenhum BV, moscão de padaria que fica rodeando as mina e não pega nem gripe! Tome! Chablau!

BETO E você que nem o pai e a mãe quiseram! Tá de favor na casa da vovozinha! Ui!

JOCA (Nervoso e despeitado) Aí mano, tá me tirando?!

BETO (Alterando-se também) Eu tava só de brincadeira! Foi você que começou a pegar pesado na zoação!

JOCA Você vai ver o pesado quando eu quebrar a tua cara! (Pedro percebe que os amigos estão se estranhando e fica parado prestando atenção na conversa dos dois com cara de desaprovação, interagindo com a plateia e fazendo gestos de reprovação).

BETO Cê vai quebrar minha cara?! (Quando Beto se aproxima, Zeca se afasta e vice-versa. A ideia é criar um efeito cênico, dinâmico com certo tom de comicidade).

JOCA Ah vou! BETO Cê vai? JOCA Ah vou?

PEDRO Ei! (ninguém dá ouvidos a Pedro)

BETO Cê vai?

JOCA Ah vou?

PEDRO Ei! (aumenta a intensidade da voz, mas ainda com certo controle)

BETO Cê vai?

JOCA Ah… (interrompido por grito de Pedro)

PEDRO (grita) Ei, vocês dois! (diminui um pouco o tom, mas ainda continua enérgico) Será que dá pra discutir a relação em outro momento!? (diminui mais o tom) Desse jeito os vigias vão encontrar a gente, caramba!

JOCA Foi ele que começou! BETO Não fui eu não! Foi você! JOCA Euuuu uma pinoia! Foi você! BETO Euuuu uma ova! Foi você! JOCA Eu não! Você!

BETO Você!

JOCA Você!

PEDRO Psssss! Pssssss! (grita) Chega!



CENA II

(Pedro, Beto, Joca, vigia 1 e vigia 2)

VIGIA 1 (Subitamente, diz a fala de fora do palco, em tom forte e com autoridade) Quem tá aí? Quem tá aí? (Luz de farolete de fora mirando para dentro do palco. Efeito também pode ser realizado com canhão de luz branca. Enquanto a fala do vigia 1 é proferida, as personagens que estão em cena, ficam estáticas, tentando descobrir de onde vem o barulho).

VIGIA 2 Por aqui! Por aqui! Parece que tinha gente conversando e brigando dessa lado! Vamos!

JOCA Ih sujou, moçada!
BETO: E Agora! Eu não quero ir para a cadeia!

PEDRO Shiu! Rápido se escondam naqueles arbustos perto do muro! Rápido! (Rapidamente, os garotos ficam atrás dos arbustos, ocultando-se dos vigias, mas ficando parcialmente visíveis para a plateia)


Entram os vigias no centro do palco e no proscênio, olhando de um lado para outro em busca de algo.


VIGIA 1 É, parece que a conversa tava vindo daqui! Mas agora não tem nada, nem ninguém por aqui! Que coisa estranha!

VIGIA 2 É, também notei! Esse lugar é sinistro à noite! Outros colegas de turno disseram que já ouviram passos, som de galope de cavalo, conversas e até gritos! Fora os vultos no meio do jardim! Tem gente que acha que esse lugar é mal-assombrado!

VIGIA 1 Ih, lá vem você com aquelas histórias pra boi dormir de novo!

VIGIA 2 Mas… e se for verdade?

VIGIA 1 Quer saber o que eu penso? Acho que essa história toda é uma balela!

VIGIA 2 Como saber se é verdade ou não? E se ele estiver nos observando neste exato momento?

VIGIA 1 Ah deixa de besteira! Vamos vistoriar esse local! Se tiver alguém no parque, ainda deve estar escondido por aqui! Vamos vasculhar! (Os vigias vão observando e rodando pela cena, polarizando a marcação: enquanto um dos vigias fica de um lado do palco, o outro fica na outra extremidade. Neste momento, fundo musical de mistério e suspense. De repente, um dos vigias começa a chegar perto do esconderijo dos garotos. Quando está prestes a descobrir o esconderijo, Pedro, do outro lado, começa a imitar um gato).

PEDRO Miau! Miau!

VIGIA 2 (Para com expressão conclusiva) Ah! Tá explicado! Era apenas um gato! Ufa!

VIGIA 1 (Desconfiado) Hum! Sei não! Acho melhor averiguarmos mesmo assim! (o vigia se aproxima de novo do esconderijo dos garotos)

PEDRO (Imitando um macaco raivoso) Uh! Uh! Ah! Ah! Ah!

VIGIA 1 (afastando-se do arbusto) Vixe! Parece um macaco!

VIGIA 2 (Com receio) Olha! Eu não tô a fim de ser infectado, cara! Prefiro encarar um fantasma!

VIGIA 1 É pensando bem… Acho que não há necessidade de correr atrás de um macaquinho, né! Pra que estressar o bichinho!

VIGIA 2 Se você estiver de acordo, eu também estou. Falou e disse! Sem dúvida! (Em outro tom) Vamos sair daqui!

VIGIA 1 Sem dúvida, aliás, me lembrei que precisamos averiguar a outra área do parque urgente!

VIGIA 2 (ansioso para sair dali) De acordo! Então, o que estamos esperando? O dever nos chama! Vamos!

VIGIA 1 Perfeitamente! Positivo e operante! Vamos! (Saem de cena andando bem depressa).


CENA III

(Pedro, Beto e Joca)
Assim que os vigias saem de cena, os garotos deixam seus esconderijos lentamente e, quando percebem que estão sozinhos e seguros, saem para comemorar o êxito da estratégia contra os vigias.

JOCA Yes! Conseguimos!

BETO Conseguimos? Foi o Pedrão que salvou a nossa pele!

JOCA E daí?! Tamo junto nessa! É o grupo que importa, cara!

BETO (Ironizando) Ah entendi! O Pedro fez todo trabalho e a gente só colocou o nome na capa!

JOCA É isso aí!

BETO Típico!

PEDRO Ei galera, foco na atividade! Precisamos agir rapidamente antes que os vigias voltem! Lembrem-se do nosso propósito!

JOCA E… qual é o nosso propósito mesmo?

BETO Nooooooooossa! Você não disse isso! (Batendo a mão no próprio rosto)

JOCA E, você, oh, sabe-tudo, se lembra?

BETO Claro que sim… (pensando) Qual é mesmo, Pedro, o nosso propósito?

PEDRO Aff, tô bem arranjado com vocês dois! (Em outro tom, mais didático) Olha, nós viemos aqui para marcar o nosso território! Nós vamos pichar o quadro “Independência ou morte”, que fica em uma das paredes internas do museu da Independência! Vamos deixar a nossa marca! Vamos esfregar na cara da sociedade…

BETO que somos pichadores e vândalos depredando patrimônio público?

PEDRO Não! Veja por outro ângulo! Nós vamos ganhar moral com os outros caras, entendeu? Imaginem só! Pra pichar essa obra tem que ter coragem.

JOCA Tá! Mais quem garante que essa obra não foi removida para um lugar seguro, provisório e trancado às sete chaves em um cofre de segurança máxima?

PEDRO Não esta obra. Ela está chumbada na parede do museu. Qualquer tentativa de removê-la, poderia danificá-la!

BETO Eu ainda prefiro o shopping!

JOCA Que foi franguinho, tá com medinho? Pó-pó-pó!!!

BETO Não é medo! Eu uso o aplicativo cérebro! Não tô a fim de fazer visitinha ao juizado de menores e nem de ficar limpando parede aos finais de semana, valeu!?

PEDRO e JOCA (em tom jocoso de confirmação) É! Tá com medo!

BETO Medo eu! (Despeitado) Me dá isso aqui que eu vou mostrar pra vocês!

PEDRO Alto lá, forasteiro! (interrompendo o colega) Eu tive a ideia, eu faço as honras!

BETO Então tá! Mas que fique claro que eu queria ter ido primeiro! (fingindo despeito, mas aliviado por não ser o primeiro).

JOCA É isso Pedrão! E a galera vibra! Ê! Ê! Ê! (imita multidão ou torcida de futebol)

PEDRO Não vejo a hora de pichar esse quadro idiota!

BETO Ah, se dona Edna te ouvisse agora, ela teria um revertério!

JOCA Dona Edna? Quem é Edna?

BETO Era a nossa professora de história. Você não a conheceu. Você entrou na escola depois que ela faleceu.

JOCA Provavelmente, eu não iria gostar dela. Aliás, pra que estudar história?! Pra que estudar o passado?! O que passou, passou, não é mesmo?! KKKKKK!

BETO Edna dizia que estudar história é importante para conhecer o passado, entender o presente e transformar o futuro, sem cometer as mesmas idiotices e os erros de nossos antepassados! E dizia também que um povo que não conhece a própria história é fácil de ser dominado, explorado e manipulado por ditadores e governantes sem caráter.

JOCA Quer dizer então que a professora de história virou história?!

PEDRO É. Foi uma grande perda! Ela era gente fina! Professora como ela é difícil de se encontrar hoje em dia. Agora (com impaciência e certo incômodo) será que dá pra focar no nosso plano!

JOCA Peraê! Peraê! Quero saber mais! Ela morreu de quê? Ela era muito velha?

BETO Velha é apelido! Dona Edna serviu vinho na santa ceia, cara! Era mais velha que a múmia de Tutancâmon!

JOCA e BETO KKKKKK!

PEDRO Aí Beto! Para de zoar com a Edna valeu!? Respeita a memória dela!

BETO Foi mal, Beto! Tô parando! Tô parando!

Pedro se senta em uma pedra e fica pensativo. Zeca se aproxima de Beto.

JOCA (Sussurrando) Que bicho mordeu ele? Parece que ficou incomodado quando falamos da veia!

BETO Dona Edna era uma professora muito bacana! Apesar de idosa, era jovem por dentro e cheia de vida, sabe! E quando a mãe de Pedro foi embora de casa e abandonou ele com a avó, o cara ficou muito revoltado! E Edna foi a única que o ajudou! Sabe, às vezes, a gente quer ir pra escola pra ouvir histórias, trocar experiências, ter apoio e não só pra ficar copiando lousa e ouvir que precisa entender a matéria pra passar no vestibular e ser alguém na vida! A gente é alguém, pô! Alguém que tá pedindo socorro, só que muitas vezes ninguém nota! Só que Edna era diferente! Ela percebeu que o Pedro não tava bem e o ajudou! Quando ela morreu, o Pedro se sentiu abandonado novamente. Só que agora pelo destino. E então, ele surtou geral! E se rebelou contra tudo e todos!

JOCA Quando ela morreu?

BETO Ela morreu na véspera do dia da independência! O Pedro tinha até feito um poema pra apresentar na comemoração do 7 de setembro, mas quando ele chegou à escola e ficou sabendo da notícia, ele rasgou o poema e nem quis cantar o hino nacional!

JOCA E você sabe do que que ela morreu? PEDRO Ela não morreu! Assassinaram ela! JOCA Como assim? Assassinaram ela!
BETO É que a morte dela poderia ter sido evitada, entende. Ela passou mal de madrugada e foi para o pronto socorro, mas o médico plantonista que devia estar em seu posto, estava ausente. Dizem que se ela tivesse sido medicada e tratada a tempo, provavelmente teria sobrevivido. Mas devido ao descaso daquela unidade de atendimento, ela veio a falecer!

JOCA Puxa que pena que eu não a conheci! Eu adoro gente descolada!

BETO Gente! Gente! Gente! (estendendo a mão) Sentiram isso!

JOCA Que foi? Borrou as calças?

BETO Ah, vai se catar! Tô falando sério! Parece que tá chuviscando! Olha o céu! Tá sem estrelas, e carregado de nuvens! É Sinal de chuva!

JOCA Vixe, Pedro! É mesmo! E parece que está começando a chuviscar!

PEDRO Droga! Mas que merda! Precisamos nos apressar! Vamos, é por aqui!


Música para indicar percurso. Quando a música acabar, significa que eles chegaram até o quadro

“Independência ou morte”. No telão, uma imagem da obra de Pedro Américo é projetada.

JOCA Pronto, chegamos!

BETO E agora?

JOCA Agora, a gente tira a espada e grita “Pelos poderes de Grayskull!”

BETO E que tal isso “Thunder! Thunder! Thunder cats! Roll!!!!!”

Os dois caem na gargalhada.

PEDRO Terminaram com o momento nerd?

BETO Nerd não! Universo GEEK, por favor!

PEDRO Vou mostrar o que é diversão! (sacode a lata de spray e quando vai pichar um trovão e um relâmpago ressoam assustando todos, fazendo Pedro interromper a ação).

BETO Puxa que susto! Meu coração quase saltou pela boca agora!

JOCA Foi só um raio, seu besta!

PEDRO Bem, onde eu estava mesmo? Oh sim! Eu vou pichar essa pintura agora!

Volta-se para pichar o quadro e um urro ecoa de fora do palco, interrompendo Pedro novamente.

PEDRO Será que vocês dois não podem parar de gracinhas!?

BETO Ei! Não olhe pra mim não! Não fui eu!

JOCA Nem vem! Eu não fiz nada!

Outro urro e sons de passos pesados se aproximam do centro da cena.

BETO Pessoal, não tô gostando disso!

JOCA Tô contigo e não abro, cara!

CENA IV

(Pedro, Beto, Joca, Mapinguari 1 e Mapinguari 2)
De repente de cada lado do palco, figuras monstruosas aparecem e ficam encarando os garotos.

PEDRO Pessoal, sem gestos bruscos!

MAPINGUARI 1 e 2 (em uníssono) Devorar cabeças! Anhangá quer Piatã morto!

JOCA Que que ele disse?

BETO Eu sei lá! Coisa boa é que não é!

MAPINGUARI 1 e 2 Devorar cabeças! Anhangá quer Piatã morto!

A cada fala os monstros se aproximam, fazendo com que os garotos se aglutinem no centro do palco.

BETO Socorro! Eu sou jovem demais para morrer!

MAPINGUARI 1 e 2 Devorar cabeças! Anhangá quer Piatã morto!

Um Mapinguari agarra Beto e o outro agarra Joca. Eles começam a se debater e a gritar por socorro. Os Mapinguaris os arrastam para fora da cena. No palco, apenas uma penumbra, com luz estroboscópica e fundo musical de tensão e suspense. Assim que Beto e Joca são tirados da cena, um rápido blecaute toma a cena. Em seguida, a luz volta ao normal, a música cessa e Pedro se vê sozinho no palco.

PEDRO Beto! Joca! Cadê vocês? Isso não pode ser real! Deve ser um pesadelo!

CENA V

(Anhangá e Pedro)
ANHANGÁ (Aproximando-se e andando em volta de Pedro) Lamento desapontá-lo, Piatã! Mas isso não é um pesadelo! Pesadelo é esse mundo que você vive!

PEDRO (Tenso e histérico) Quem é você? Cadê meus amigos?! O que você fez com eles?!

ANHANGÁ Eu sou Anhangá! O senhor supremo da guerra, da escuridão, da morte e das regiões infernais! Sou o purificador desse mundo! Seus amigos estão sob a custódia de meus serviçais, os Mapinguaris! Nada aconteceu com eles... ainda! Mas isso é uma questão de tempo! Meus bichinhos adoram devorar cabeças humanas! Creio que o tempo não esteja a favor deles! Então, é melhor que você faça as perguntas certas e não desperdice o tempo de seus colegas.

PEDRO O que você quer de mim?

ANHANGÁ Direto ao ponto! Muito bem, aprecio sua esperteza, Piatã! (Breve pausa) Jure lealdade e servidão a mim. Entregue-me seu muiraquitã e então devolverei seus amigos sãs e salvos para a vida monótona e vazia que os aguarda dentro da caverna dos humanos.

PEDRO Caverna dos humanos?

ANHANGÁ Pelo visto você desconhece Platão?

PEDRO Só sei que nada sei.

ANHANGÁ Ah, a ignorância! Minha zarabatana preferida! Fere, paraliza e mata sem que a presa perceba! (Em outro tom) A humanidade vive dentro de uma caverna, acorrentada às próprias paixões, sentimentos, desejos e sede de poder! Porém, enfeitaram tão bem essa caverna com ilusões que nem se dão conta que vivem como animais enclausurados, esperando o abate final!

PEDRO Se somos tão insignificantes, por que você quer nossa ajuda?

ANHANGÁ Humanos comuns não me interessam! Exceto pela saborosa carne, sangue e vísceras! Mas o que quero mesmo são os Piatãs!

PEDRO Piatã? O que é Piatã?

ANHANGÁ Piatã, na língua tupi significa “pedra dura” ou “homem forte”. São humanos que Tupã, meu irmão e inimigo, escolhe e presenteia com o poder do trovão para que os homens possam se levantar contra mim! Porém, Piatã é como uma lagarta em um casulo, frágil como uma mosca antes de despertar! Apenas quando Piatã se transformar em Ubiratan é que pode ter uma chance de enfrentar Anhangá! Portanto, quero propor um acordo amigável, caro Piatã, renda-se e entregue seu muiraquitã para mim e deixo seus amigos viverem!

PEDRO Mas eu não tenho esse tal de muiraquitã?

ANHANGÁ O muraquitã só se vê fora da caverna. Tenho que extraí-lo do seu coração!

PEDRO Não! Você vai me matar?

ANHANGÁ Na dimensão em que atuo, não existe morte! O que vocês chamam de morte, é apenas uma passagem para outro plano! Digamos que você apenas sairá da caverna!

PEDRO Não consigo fazer isso!

ANHANGÁ Se jurar lealdade a mim, posso lhe dar uma sobrevida no corpo de um mapinguari. Agora vamos! Preciso de seu muiraquitã! Ajoelhe-se agora! Vamos!

PEDRO Não! Eu não quero fazer isso! ANHANGÁ Você não tem escolha! PEDRO Não! Eu vou fazer isso!

ANHANGÁ Talvez eu possa lhe dar uma ajuda! (Estrala os dedos e dá um grito de chamamento, fazendo dois mapinguaris entrarem bruscamente, segurando os braços de Pedro, fazendo-o ajoelhar à força).

PEDRO Me solta! Me solta!

ANHANGÁ Calma, criança! Logo esse pesadelo acabará e você será mais um poderoso

Mapinguari do meu exército! Agora relaxe! Serei breve! Prometo!

PEDRO Não! Não! Não!


CENA VI

(Tupã, Anhangá e Pedro)

Som de trovão. Tupã entra em cena. Anhangá faz uma expressão de repulsa irônica, pois Tupã vem trajado como uma velha anciã, contrariando os estereótipos do senso-comum da supremacia do gênero masculino no panteão dos deuses da maior parte das mitologias.

TUPÃ Solte ele, Anhangá!

ANHANGÁ Irmão! Mas que agradável surpresa! Ou será que deveria dizer, irmã!? Estou confuso! Me ilumine! (Os mapinguaris soltam Pedro e se posicionam ao lado de Anhangá).

TUPÃ Meu poder transcende a distinção de gênero: o sagrado masculino e o sagrado feminino residem em harmonia dentro de mim! Diferentemente de você que ainda precisa associar seu poder a virilidade do macho apenas para reforçar sua frágil influência sobre os homens.

ANHANGÁ Quanta hipocrisia! Você veste fantasias para atrair a atenção dos humanos! Que patético!

TUPÃ Pelo contrário, Anhangá! Eu me visto e me apresento aos humanos conforme a lente que enxergam. Os homens são livres para me seguir ou não! Já você escraviza almas pelo terror, pelo medo, pela opressão e pela morte! Que mérito há nisso?!

ANHANGÁ Não estou atrás de mérito! Eu quero sangue! Sangue! Quero minhas oferendas! Os meus sacrifícios! E essa maldita anomalia está atrapalhando os meus planos! Portanto, ele deve se render a mim ou será destruído!

TUPÃ O garoto disse não! Você não ouviu!? Piatãs devem ter a liberdade de escolher o lado que querem seguir: luz ou escuridão! Deixe-o agora! Ele está sob minha proteção agora!

ANHANGÁ Você é uma tola! Outsiders não possuem lado, irmã!

TUPÃ Você entendeu, irmão! Deixe-o em paz! Ou teremos que lutar!

ANHANGÁ Ora, ora, ora… mas o que temos aqui! Não é para tanto! Quer seu outsider? Então fique com ele! Mas, escute bem, Tupã! Não vou abrir mão da minha sede de sangue! (Anhangá faz um sinal e os mapinguaris empurram Pedro para o chão, próximo a Tupã). Um dia não mais te obedecerei! Um dia você não terá mais poder para me impedir! E esse dia está chegando! Os templos estão caindo! E com a queda, tudo muda!

TUPÃ Está me ameaçando, Anhangá!

ANHANGÁ Oh não, não! (Com ironia) Só estou te lembrando de que tudo no mundo dos homens tem um fim, um apocalipse, um apogeu, um desfecho, uma queda, um grand finale, um Ragnaroc! Você viu como foi lindo o último templo ardendo em chamas! Ou será que devo dizer “Museu Nacional”! Ah! Ah! Ah! Conosco não será diferente! E quando esse dia chegar, não me curvarei perante suas ordens! O mundo dos homens está perecendo e com eles a luz de Tupã se extinguirá e a escuridão de Anhangá reinará! Reinará! (Rodeando o irmão) Estais enfraquecendo, irmã! Sinto tua luz fraquejar! Sinto… argh!

TUPÃ (Pegando no pescoço de Anhangá e vociferando com ódio e irritação) Posso te garantir que minha fraqueza pode aniquilar você num piscar de olhos! Quer sentir minha fúria? (Os mapinguaris se aproximam, mas Anhangá faz um gesto para que se afastem).

ANHANGÁ (Desvencilhando-se) Poupe a energia que lhe resta, irmã! Você vai precisar dela! (Solta-se e faz um sinal para que seus servos o sigam). Vamos, meus filhos! Tupã precisa descansar, pois vai precisar de toda a energia que ainda lhe resta! Até breve, Tupã! Descanse enquanto preparo o seu requiém! (leve e breve risada irônica)! Vamos! Yêh! Yáh! (Anhangá e seus seguidores saem de cena, deixando Tupã e Pedro a sós).


FIM DO PRIMEIRO ATO SEGUNDO ATO
CENA I

(Tupã e Pedro)

TUPÃ Ei garoto, você está bem?

PEDRO Quem é você? O que quer de mim? Cadê meus amigos? Por que me perseguem?

TUPÃ Calma, meu caro! Cada pergunta precisa de tempo para fornecer uma resposta saudável e plausível! Mas, vamos a primeira pergunta: “Quem sou eu?” (Ajuda Pedro a se levantar).

PEDRO (Inquieto) É… É… Isso! Isso mesmo! Quem é você?

TUPÃ (Apontando para o espaço como se estivesse selecionado estrelas) Sou um ser multidimensional que caminha sobre essa terra muito antes de sua existência. Sou energia cósmica condensada. Porém, como a inteligência humana precisa de metáforas e prosopopeias para compreender quem sou, eu me apresento de acordo com a compreensão humana. Em outras palavras, me visto com as cores e a vestimenta que os homens conseguem me assimilar. Para uns, fui Buda, para outros, fui Ganesha, Shiva, Zaratrusta… São tantos nomes… Mas, para os índios e o povo dessa terra, sou Tupã. E para você me apresento como dona Edna.

PEDRO Por que você está fantasiado de dona Edna, minha antiga professora de história?

TUPÃ Não estou fantasiado. Estou materializado e integrado de acordo com a essência que emana de seus pensamentos e seus sentimentos...Talvez, a pergunta mais certa a se fazer seria: “Por que me apresento assim para você?”

PEDRO Tem razão! Por que você está com essa forma agora?

TUPÃ Piatãs são teimosos e ariscos. São difíceis de convencer. Porém, possuem grande coração e tudo fazem em prol daqueles que um dia amaram. Edna foi mais do que uma professora de história, não é mesmo? Ela foi a mãe que você não teve. E o destino a tirou de você muito cedo, aumentando sua ferida e sua revolta.

PEDRO Não foi o destino que a tirou de mim! Foi essa sociedade podre que você defende! Talvez

Anhangá esteja certo! A destruição é o caminho!

TUPÃ É, talvez… Mas se pensar assim estará se distanciando daqueles que te um dia te amaram. Já pensou se tua professora pensasse assim. Será que teria acreditado em você? Será que teria te ajudado!

PEDRO Você não é ela! Só está tentando me enganar para conseguir poder. (Colocando a mão sobre a cabeça) Você não é diferente dos candidatos em época de eleição! Você não é diferente de Anhangá!

TUPÃ De fato, temos muitas coisas em comum. Vocês nos chamam de deuses. Temos poderes, súditos, filhos, protegidos… Porém para outros, como Anhangá, vocês não passam de escravos, servos, sangue e carne! Como vê, pequenas diferenças para nós, podem significar a vida ou a morte para toda a humanidade.

PEDRO E como posso confiar em você?

TUPÃ Você pensa que essa é a primeira vez que conversamos, garoto? Tudo está conectado! O ontem, o hoje e o amanhã! E fui sua professora e hoje sua professora sou eu.

PEDRO Você é Edna!

TUPÃ Sim. E Edna é Tupã! Edna sou eu! Quer avatar mais perfeito para a humanidade que uma professora de história, meu querido, Pedro!

PEDRO (Reconhecendo sua antiga mestra e abraçando-a) Edna, que saudade!

TUPÃ Eu sempre estive por perto, garoto. Nunca te abandonei!

PEDRO Mas por que você partiu!

TUPÃ Foi preciso. Ninguém evolui quando está na zona de conforto! Por isso, precisei partir. Porém, sempre estive perto zelando teus passos.

PEDRO E quem é Anhangá?

TUPÃ Somos mais antigos que a criação desse planeta. Somos do tempo em que os planetas do sistema solar eram conectados pelas magnetosferas, gerando um alinhamento contínuo e constante. Tal alinhamento permitiu a criação tanto das formas primordiais de vida até as formais mais complexas, como a raça humana. A energia fluía do solo como sulcos ou rios, que permitiam a realização de toda a criação. Algumas civilizações antigas, como os egípcios, maias, astecas entre outros ergueram templos nos pontos ondes os sulcos e rios de energia se cruzavam, formando centros de energia. Os místicos chamavam tais pontos de “linhas de Ley”. Tamanho poder dividiu os deuses e os jogou uns contra os outros. Enquanto alguns de nós queriam criar e desenvolver a vida, outros eram verdadeiros predadores! Só queriam sacrifícios! Só enxergavam a raça humana como um saboroso petisco! A guerra entre os deuses foi eminente e durou séculos!

PEDRO E como acabou essa guerra? Quem venceu?

TUPÃ Os deuses que defendiam a humanidade venceram, mas tivemos que pagar um preço terrível!

PEDRO E qual foi?

TUPÃ Tivemos que destruir os centros de poder! As linhas de Ley!

PEDRO E como se destrói uma fonte de poder?

TUPÃ Tivemos que destruir a magnetosfera de um dos planetas do sistema solar. O panteão dos deuses, resolveu que Marte deveria ser escolhido, pois ainda era o menos desenvolvido. Ao destruirmos a atmosfera de Marte, rompemos com o alinhamento contínuo que existia entre os planetas e as linhas de Ley deixaram de ser alimentadas, enfraquecendo todos os deuses. Só venceram os deuses que tinham a devoção da humanidade, pois a fé dos homens, fornecia incomensurável energia para os deuses, fornecendo uma alternativa de energia para substituir aquilo que era fornecido pelos antigos centros de energia, agora enfraquecidos. Os sacrifícios alimentavam os deuses de maneira imperfeita! É como junk food, entende? Agora a fé, a devoção entre criatura e criador é o elo mais energético e duradouro. É o mais nutritivo dos alimentos! Com o enfraquecimento das linhas de Ley, os deuses que cuidavam e protegiam a raça humana tiveram grande vantagem sobre os deuses predatórios e então deuses como Anhangá, Moloch, Tezcatlipoca, Xipe Totec foram exilados para o abismo da escuridão extrema.

PEDRO É por isso que dos templos da antiguidade só restaram ruínas?

TUPÃ Exatamente. Eles já não possuem a energia que antes tinham. Outros então, são como vulcões extintos. Com a quebra do alinhamento contínuo, os vórtices de força ficaram instáveis e de tempos em tempos podem ser deslocados de seu lugar habitual. Renovando apenas durante aqueles alinhamentos esporádicos que ocorrem de tempos em tempos remotamente.

PEDRO E você sabe onde os centros de força se encontram atualmente?

TUPÃ Sim. Atualmente, tais vórtices encontram-se nos monumentos, instituições públicas, bibliotecas e museus. Tais como o Museu Nacional, o Museu da Língua Portuguesa, o Memorial da América Latina, o Instituto Butantã, o museu do Ipiranga entre outros. A energia desses vórtices ainda atraem avatares ou outsiders como você.

PEDRO Avatar? Outsider? Que termos são esses?

TUPÃ Avatar seria a materialização de uma energia ou de um ser multidimensional. São seres gerados como respostas ou como elemento de evolução ou destruição para a humanidade. Por trás das grandes transformações positivas ou negativas que sacudiram o mundo sempre havia um avatar como estopim e pivô de toda a mudança. Todo avatar nasce neutro e em algum momento de sua vida deve decidir se se tornaram: mapinguaris ou ubiratãs. Todo avatar se sente deslocado de seu tempo. Não consegue se adequar à sociedade em que vive, porque ele próprio representa o vento da mudança, ele é a semente da transformação que mudará o mundo. Gente assim é conhecida como "outsider", termo que é atribuído para todo aquele que não se enquadra à sociedade em que pertence, provocando alterações no estilo de vida, no sistema de crenças e valores, alterando o destino do mundo em que habita.

PEDRO E eles podem escolher se serão Mapinguaris ou Ubiratãs?

TUPÃ Isso mesmo. Quando nascem, são chamados de “piatãs”, termo que significa “pedra”. Nessa fase, são como lagartas em um casulo. São neutros, frágeis e suscetíveis aos eventos do cotidiano ao qual pertencem. Um belo dia, o casulo rompe e o avatar desperta como um grito. Um grito de independência e empoderamento, que ecoa em todos os cantos e transforma tudo que toca ou influencia! Se seguir a luz, torna-se um “Ubiratã”, que em tupi significa “lança forte” ou “guerreiro invencível”. Porém, se seguir o caminho da escuridão, tornar-se-á um “mapinguari”, também conhecido como “devorador de cabeças” ou “devorador de mentes”.

PEDRO Como assim “devorador de cabeças”?

TUPÃ Enquanto os ubiratãs direcionam a humanidade para a luz, os mapinguaris direcionam os homens para o abismo e para a escuridão sem fim. Eles são deuses e demônios predadores. Não apenas devoram cabeças, mas produzem dependência psíquica de suas vítimas através do medo e dos prazeres, como poder, riqueza, luxúria, vaidade e outros vícios de sua efêmera humanidade. Atualmente os mapinguaris possuem exércitos com legiões de escravos, trabalhando em prol das criaturas do abismo.

PEDRO E quanto aos deuses aprisionados? Essas criaturas do abismo? Eles podem sair dessa prisão?

TUPÃ Infelizmente sim. Para um ser multidimensional nada é impossível! A forma divina ou demoníaca deles está presa no abismo, mas nada os impede de voltarem à humanidade através de uma experiência humana. Como disse, nem todo o avatar vem para salvar a humanidade! Você nunca ouviu falar de Genghis Khan?

PEDRO Certa vez li uma frase dele que dizia assim: “Eu sou um castigo de Deus. E se você não tivesse cometido grandes pecados, Deus não teria enviado um castigo como eu”.

TUPÃ Ele não foi o único flagelo que a humanidade enfrentou! A história é repleta de exemplos: Nero, Calígula, Conde Vlad Tepes, Hitler, Osama Bin Laden e muitos outros.

PEDRO O mesmo se aplica a Buda, Krishina, Cristo, Gandhi, Mandela?

TUPÃ Sim. Com a sútil diferença de que esses últimos trouxeram a luz para a humanidade, enquanto os outros mergulharam a mesma em guerras, trevas e escuridão.

PEDRO Existiram avatares no Brasil?

TUPÃ Olhe para esse quadro! (Aponta para o quadro de Pedro Américo) Pedro I foi o avatar que libertou o Brasil da exploração de Portugal e outorgou a primeira Constituição da nação brasileira, em 1824. Após cumprir sua missão, Pedro I faleceu aos 36 anos, com tuberculose. Pedro II, seu filho, foi o avatar que mais desenvolvimento trouxe ao Brasil.

PEDRO E o que ele fez?

TUPÃ Bem, a lista é grande, mas vou citar os principais feitos: o desenvolvimento da economia cafeeira, a construção de ferrovias, a extinção do trabalho escravo e a criação das primeiras universidades no Brasil, formando gerações de juristas, intelectuais e políticos brasileiros.

PEDRO Sempre existiram avatares?

TUPÃ Oh sim! Existiram e existem inúmeros avatares espalhados pelo mundo, mas nem todos foram percebidos pela história. Afinal, para fazer o bem ou o mal, basta um pequeno gesto. O leve balançar da asa de uma borboleta de um lado do hemisfério pode causar um terrível cataclisma do outro lado do mundo.

PEDRO Já li sobre isso, chamam de… efeito borboleta.

TUPÃ Hum! Isso mesmo! Agora vejo porque Anhangá quer tanto capturar você. O seu muiraquitã carrega a energia do conhecimento.

PEDRO: O que é muiraquitã?

TUPÃ Todo avatar tem um muiraquitã! É uma energia de registro único, impregnada em seu corpo vital! Ela serve como fonte e como chave para diversas portas místicas, inclusive como chave para as portas do abismo. Porém, para extraí-la, Anhangá precisa arrancar e devorar seu coração ou te convencer a se tornar um guerreiro das trevas. Mas, não acredito que ele esteja disposto a compartilhar desse poder. Por essa razão, mais vantajoso para ele seria devorar seu coração e absorver todo o seu muiraquitã.

PEDRO Mas ainda tem algo que não estou entendendo bem. Tem algo que não se encaixa. Se os museus e as instituições públicas são os centros de força ou vórtices de energia, como você mencionou. Por que estão sendo alvos de “acidentes” horríveis?

TUPÃ Os seres do abismo aprenderam a captar energia de outra forma e se tornaram peritos nisso. Eles descobriram que o medo e desejo possibilitavam grande oportunidade para explorar e escravizar a raça humana. E assim, Anhangá e os outros deuses abissais encontraram outras formas de aumentar seus poderes para enfrentar os deuses da luz e seus avatares. E a cada dia que passa, o poder deles também aumenta. Quanto mais crime, violência, alienação, desigualdade e corrupção, maior o poder dos seres do abismo! Portanto, Pedro, o destino da humanidade pode estar em suas mãos!

PEDRO E o que eu preciso fazer? TUPÃ Você precisa despertar. PEDRO Mas como se faz isso?

TUPÃ O despertar ocorre com o ritual da luva de tucandeiras!

PEDRO Luva de tucandeiras?

TUPÃ Sim. Trata-se de um ritual indígena de transição da adolescência para a vida adulta. Em outras palavras, esse ritual também é conhecido como o ritual do despertar.

PEDRO E como seria esse ritual?

TUPÃ Você irá vestir, em uma de suas mãos, uma luva, cheia de formigas tucandeiras.

PEDRO Ufa! Só tenho que enfrentar umas formiguinhas! Tô dentro! E a picada delas dói muito?

TUPÃ Dor insignificante para um deus, mas insuportável para um mortal!

PEDRO Ah que ótimo! E como é a picada desse inseto?

TUPÃ Bem, dizem que a dor da picada de uma tucandeira é 30 vezes maior que a picada de uma vespa. Também dizem que colocar a mão na luva de uma tucandeira é como colocar a mão em um braseiro incandescente. Como efeito colateral, você pode sentir febre ou dor durante 3 dias, sofrer inchaço na área afetada, náusea, aumento de temperatura, necrose e paralisia.

PEDRO (Com desesperada ironia) Nossa! Você não se esqueceu de nada!?

TUPÃ Oh sim! Bem lembrado! Em raros caros, pode causar choque anafilático fatal!

PEDRO Você não teria outra prova, como, sei lá, enfrentar o leão de Nemeia ou a Hydra de Lerna?

TUPÃ Infelizmente, é o que temos para hoje.

PEDRO Bem, deixa eu ver minhas opções: ter o coração devorado? Virar uma criatura demoníaca que devora cabeças? Ou passar pelo ritual das tucandeiras? Bem, vamos então às tucandeiras, né!

TUPÃ Isso mesmo garoto! Assim que se fala… Argh… (Sente uma dor pungente e cai ao chão).

PEDRO Edna! Tupã! O que houve?

TUPÃ O alinhamento dos planetas está começando! Precisamos nos apressar! Anhangá atacará o museu e utilizará a energia do alinhamento para abrir os portões do abismo. Seus amigos correm perigo! Depois do alinhamento, não será mais possível salvá-los!

PEDRO Vamos então! Se apoie em mim! (coloca a mão de Tupã sobre o seu ombro e sai de cena)

FIM DO SEGUNDO ATO TERCEIRO ATO
CENA I

(Anhangá, Beto, Joca, Mapinguari 1 e Mapinguari 2)

Entram em cena Anhangá, seguido por dois mapinguaris que trazem Beto e Joca empurrando-o aos chão, no centro do palco.

ANHANGÁ Nietzsche costumava dizer que quando se olha durante muito tempo para o abismo, o abismo corresponde olhando para você. Acho que hoje, vocês dois vivenciarão na prática essa máxima verdadeira desse grande filósofo.

JOCA (Tentando se desvencilhar) Me solta! Me solta!

BETO (Tentando soltar as mãos) O que você quer de nós?

ANHANGÁ O que eu quero de vocês é pouco, muito pouco! Quero apenas devorar carne e sangue até que sobrem os ossos frios e secos.

BETO (Ironizando) Só isso! Não se esqueceu de nada?

ANHANGÁ Mas é claro! Vocês são o trunfo que tenho contra seu amigo Piatã! E, ademais, pra que se contentar com migalhas, sendo que em breve terei toda a humanidade como banquete apetitoso!? Paciência é uma virtude, meu caro, não é mesmo?

JOCA Você está falando do Pedro, não é? Nós não sabemos onde ele está? E se soubéssemos, jamais o entregaríamos a você?

ANHANGÁ Criatura estúpida! Não preciso de vocês para farejar minhas presas! Eu sei onde ele está! Vocês ainda estão vivos, pois quero usá-los como moeda de troca! A vida de vocês pela vida de Piatã!

BETO Por que você odeia tanto a humanidade assim?

ANHANGÁ Você está enganado! Eu não odeio a humanidade! Aliás, eu me alimentava da humanidade! Nas civilizações antigas, tínhamos uma relação bem amistosa. Os incas, maias e astecas, por exemplos, realizavam muitos sacrifícios humanos, pois a fome de um deus é imensa, se é que vocês me entendem! Vocês dois não servem nem como antepasto de minha refeição!

JOCA Aí, já ouviu falar dos benefícios do vegetarianismo?

ANHANGÁ Hipócrita! Falou o ser que se alimenta de X-Burger e adora comer bacon.

BETO É, Joca! Dessa vez ele pegou você! Não dá pra sair dessa saia justa!

JOCA Cala a boca, Beto!

BETO Ei, não desconta a tensão em mim não!

ANHANGÁ Calados os dois! Ou devoro a língua de cada um agora mesmo!

Ambos se calam de medo.

ANHANGÁ Jamais interrompa o discurso do vilão! É perigoso! Principalmente se você não for a personagem principal da história! Deixe-me ver… onde eu estava mesmo? (coçando a cabeça) Oh sim! (Com expressão de prazer por ter se lembrado, dá um tossidinha e continua) Como eu ia dizendo… as civilizações antigas me serviam diversos sacrifícios humanos! Eles diziam quem eu devia devorar e eu devorava! Simples assim! Em troca, eu propiciava uma boa colheita! Algo que tornava as vítimas cada vez mais gordas e apetitosas para mim! Tínhamos uma relação totalmente sustentável! Entretanto, quando os portugueses, espanhóis e outros navegantes adentraram pelo ocidente, dizimando e deturpando a cultura dos nativos das américas, meus rituais foram esquecidos! E eu fui ficando com fome! Fui ficando sem carne e sem sangue (tom de voz aumenta e a personagem vai ficando cada vez mais irritada). Vocês sabem o que é passar séculos com fome!? Pois é… quando reuni outros deuses e demônios dos panteões esquecidos e avançamos contra esses colonizadores cruéis e seus descendentes que mereciam morrer, Tupã, seu panteão de seres divinos e seus avatares nos traíram e nos atiraram ao abismo da escuridão, condenando-nos a fome eterna.

JOCA Senhor? Senhor?

ANHANGÁ Diga verme!

JOCA Não fomos nós que colocamos o senhor no abismo! Não tivemos culpa nisso! Nós nem éramos nascidos nessa época!

ANHANGÁ De fato. Vocês nem sequer chegam aos pés das antigas civilizações que existiram! Vocês são pura anomalia! Tupã acredita que vocês são descendentes dos grandes guerreiros e que um dia despertarão. Pra mim, vocês são como vermes e parasitas que precisam ser destruídos! Olhe ao redor! Seus governantes são corruptos, suas crenças se rendem ao dinheiro e ao capricho do poder e da luxúria! Vocês estão acabando com o próprio habitat e estão se extinguindo aos poucos! A morte para vocês é um mero favor que terei o prazer de proporcionar! E hoje, quando Tupã cair, eu me reerguerei após devorar o muiraquitã de seu último avatar, consumindo todo o rudá que abrirá as portas do abismo de uma vez por todas. E, quando isso ocorrer, adeus Tupã e adeus raça humana! (Olhando para os mapinguaris) Leve-os para o ritual, prepare-os para o sacrifício.

BETO e JOCA Me solta! Me larga! Não! Não! Não!

CENA II

(Tupã e Pedro)

Luzes se acendem, Tupã e Pedro estão ao centro do palco, rodeado por personagens figurantes com roupas tribais, que dançam em torno aos dois, proferindo aboios e vocalizações ao som de instrumentos de percussão-condução: tambor Lakota, timba, tumba ou bongô; e instrumentos de percussão-efeito: caxixis, ganzá e pau-de-chuva. As personagens se mantêm ao centro inertes e ajoelhadas uma de frente para outra, enquanto as personagens percussionistas vão criando atmosfera ritualística que servirá de base para introduzir a cena que se desenvolverá entre as personagens centrais. Quando a performance terminar, os percussionistas abrirão a roda, permanecendo em semicírculo e inertes, apenas como figurantes, auxiliando na composição do próprio cenário. Feito isso, as protagonistas devem inciar seus diálogos, dando início e continuidade à cena.

TUPÃ Preparado, Piatã!

PEDRO Na verdade não! Mas não tenho mais tempo!

TUPÃ Pois bem, você irá vestir a luva do despertar. As formigas foram sedadas com fumaça de folha de caju. Quando, você vestir a luva, eu soprarei as cinzas dos guerreiros ancestrais e então as formigas acordarão! As ferroadas irão levar tua mente ao delírio e você então enfrentará seus demônios interiores! Se conseguir suportar as três provas, quando acordar, será um ubiratã ou guerreiro da luz! Você está pronto!

PEDRO Sim, Tupã! Eu estou pronto!

TUPÃ Vista a luva, então! (Pedro, veste a luva e Tupã sopra uma poeira em na luva e em seu rosto) Boa viagem, meu jovem!

PEDRO E então? Elas acordaram! Não estou sentin… do… Argh! (Rola pelo chão em dor extrema. Os percussionistas executam um fundo para acompanhar a tensão da cena. Quando a percussão cessa, as personagens soltam a deixa e continuam o diálogo).


CENA III

(Pedro e sua mãe)

De repente, a percussão cessa e um novo personagem entra em cena – a mãe de Pedro.

MÃE Olá, Pedro! Como vai?

PEDRO Mãe é você?

MÃE Sim, meu filho. Sou eu! Sua mãe! Me ajude, meu filho! Estou na escuridão e só você pode me ajudar! Me ajude, filho meu!

PEDRO Por que você me abandonou? Por que me deixou, mãe?

MÃE Eu era usuária de drogas. Estava fora de mim! Eu parti para que você não sofresse! Fui embora para que não seguisse meu caminho! Por favor, filho. Me ajude! Entregue seu muiraquitã para Anhangá e ele terá clemência conosco! Por favor, filho meu! Por favor, filho meu!

PEDRO Mãe, eu não sabia que você tinha problemas com drogas! A vovó fazia questão de esconder esse fato de mim! Mas, me diga uma coisa: se você fugiu para me proteger, fazendo isso, todo o seu sacrifício seria em vão, não é mesmo? Responda mãe!

MÃE Moleque insolente! Respeite sua mãe! Faça o que estou dizendo agora!

PEDRO Não! Você não é minha mãe! E mesmo que fosse! Você me abandonou! Você já fez sua escolha! Agora é a minha vez de escolher! Lamento mãe!

MÃE Argh! (A mãe cai ao chão e se rasteja para fora do palco, sumindo da cena. Quando ela sai, Pedro sente fortes ferroadas de dor e rola pelo chão novamente).


CENA IV

(Pedro, Melissa e Zumbi)

Quando a dor cessa, Pedro levanta-se e dá de cara com outra personagem – Melissa.

MEL Oi Pedro! Lembra-se de mim?

PEDRO Claro que lembro! Você é a Mel. Minha primeira namorada! Você foi o grande amor de minha vida!

MEL Você lembra daquela noite fatídica?

PEDRO Nós tivemos uma briga feia! Eu tive uma crise de ciúmes e você terminou comigo! Uma semana depois, você sofreu um acidente e morreu. Sinto muito. Eu sofri muito com sua morte!

MEL Eu nunca te esqueci, Pedro (Se aproxima e sussurra ao ouvido de Pedro). Naquela noite, eu estava indo para sua casa. Eu queria me reconciliar com você! Queria te fazer uma surpresa! Mas estava tão eufórica, que nem sequer notei o sinal vermelho e passei direto! O resto você já sabe não é mesmo!

PEDRO Eu não tive coragem de ir ao seu velório! Eu ainda te amava! Foi difícil demais!

MEL Mentira! Você me esqueceu!

PEDRO Eu te amava, Melissa.

MEL Amava? Por que o pretérito imperfeito? Você não me ama mais? Diga que me ama, Pedro!

PEDRO Eu te amo, Melissa!

MEL Mentira.

PEDRO É verdade. Eu te amo, Melissa.

MEL Então prove. Eu quero uma prova de amor.

PEDRO Que prova você quer, Mel?

MEL Entregue seu muiraquitã para Anhangá e fique comigo. Vamos passar a eternidade juntos, meu amor. Para sempre, sem a morte para nos separar. Aliás, a morte irá nos unir. Fique comigo, Pedro.

PEDRO É isso que você quer, meu amor!

MEL É tudo o que eu mais quero Pedro. Venha comigo. Você me aceita novamente, Pedro?

PEDRO Eu aceito, Mel. Mas, antes, quero te fazer uma pergunta.

MEL Faça, Pedro. Faça o que você quiser comigo.

PEDRO Me responda: naquele dia fatídico de seu acidente, quem era aquele cara que morreu junto com você? E por que a autópsia revelou sinais e embriaguez em vocês dois.

MEL Eu não me lembro disso, Pedro.

PEDRO Você não se lembra. Mas ele não te esqueceu. E agora mesmo, veio te buscar para o leito de núpcias eterno!

ZUMBI Melissaaaaaaaa! Venha para cama! Está muito frio sem você!

MEL Não! Me deixe! Me deixe! Pedro, faça alguma coisa! Eu te amo e você me ama! Pedro! Pedro!

ZUMBI Venha, Melissaaaaaaa! Venha, minha amada!

MEL Não! Não! Pedro, me salve! Socorro! Socorro! (O zumbi a arrasta para fora de cena)

PEDRO Eu te amei, Mel. Mas você nunca me amou. Eu sofri muito quando você morreu. Mas com o tempo eu aprendi a superar essa dor… Argh!



CENA V

(Pedro, Beto, Joca, Anhangá, Tupã e Mapinguari 1 e 2)

Outro espasmo e Pedro rola pelo chão e a percussão toca para marcar o momento de tensão. Em seguida, entram em cena Anhangá, seguido por dois mapinguaris que trazem Joca e Beto com as mãos amarradas. Todos ficam ao centro. Anhangá e Pedro ficam mais próximo do proscênio.

BETO Pedro, que bom te ver.

JOCA E aí cara!

PEDRO E aí galera? Vocês estão bem?

BETO Estamos sim, fera.

JOCA Pelo menos, por enquanto.

ANHANGÁ Cansei de ser bonzinho com você, Piatã! Entregue-me seu muiraquitã pela vida de seus dois amigos. Você ainda sai ganhando. Eu só levarei sua vida insignificante. Pense bem, Piatã! Sua mãe não o quis. Você nem sequer conhece o seu pai. Até a mulher da sua vida o traiu! Você não tem motivos para viver, Pedro. Sua vida sempre foi um fracasso, uma patética anomalia. Mas, eu, Anhangá, te dou agora uma chance única de dar um sentido a essa vida medíocre! Entregue-me seu muiraquitã e pouparei a vida de seus dois amigos.

JOCA Não faça isso, Pedro.

BETO É, Pedro. Não faça isso!

ANHANGÁ Ok! Acho que não fui bem convincente! Mapinguaris, devorem a cabeça desses dois agora! (Os mapinguaris se posicionam em frente as personagens Joca e Beto e começam a comprimir a cabeça deles com as mãos. Ambos começam a gritar de dor e quando a dor parece ficar insuportável, Pedro interrompe os dois).

PEDRO Chega! Basta! Eu me rendo! Darei o que você quer! Beto e Joca nunca fizeram mal a ninguém e se estão aqui foi por minha causa! Eu me rendo! Pegue seu muiraquitã! Mas, primeiro solte-os agora!

ANHANGÁ Você não está em condições de me pedir nada! Mas como sou benevolente! Vou conceder-lhe tal pedido como o último desejo de um moribundo! Mapinguaris, solte-os! (Os mapinguaris soltam Joca e Beto, que correm para trás de Pedro). Pronto! Feito! Agora, cumpra sua parte! Ajeolhe-se perante a mim, Piatã!

PEDRO Como queira, Anhangá! (Pedro ajoelha-se em frente a Anhangá)

JOCA Não faça isso, Pedro!

BETO Pedro, fuja! Não se renda!

PEDRO Não, meus amigos! Um verdadeiro guerreiro não foge aos perigos! Um verdadeiro guerreiro nada teme!

ANHANGÁ É pena que você não chegará a ser um verdadeiro guerreiro, Piatã! Seu muiraquitã é meu! (Anhangá dá um golpe no peito de Pedro para arrancar o coração deste, mas sua mão poderosa, desta vez, não consegue dilacerar o peito de Pedro. Anhangá tenta novamente.) Seu muiraquitã é meu! (Tenta outra vez) Meu! (Tenta outra vez, porém na última tentativa, Pedro segura a mão de Anhangá e este não consegue se soltar. Os mapinguaris, assustados dão um passo para trás e depois correm para fora do palco e desaparecem) Mapinguaris! Mapinguaris! Covardes! Covardes! (Tentando se desvencilhar) Me solte, Piatã! Me solte, Piatã! (Nisso entra Tupã).

TUPÃ O Piatã despertou Anhangá! Agora ele é um Ubiratã! Ele é um guerreiro da luz!

ANHANGÁ Mas como assim? Fiz tudo certo! Esse muiraquitã era para ser meu! Piatã não passou da terceira prova da tucandeira! Ele se rendeu!

TUPÃ Pelo contrário, irmão! Nas duas primeiras provas, ele deixou apenas que o destino de cada ser seguisse seu próprio curso. Já na terceira prova, quando optou por salvar seus amigos, agiu como um autêntico guerreiro da luz, agindo com justiça e extrema coragem. Justiça, pois seus amigos não mereceriam morrer pelas mãos dos mapinguaris; coragem, pois, mesmo sabendo que a derrota era eminente, ele não hesitou em se lançar ao socorro de seus amigos. Piatã despertou Anhangá. Agora ele é um Ubiratã!

ANHANGÁ Maldito seja, Tupã! Vocês me enganaram!

TUPÃ Não, meu caro! Foi você que se enganou! A sede de sangue cegou sua razão! Mas quero lhe dar um presente para que você não volte ao abismo de mãos vazias (Ubiratã continua a segurar a mão de Anhangá.Tupã retira a luva da mão de Pedro e a coloca na mão de Anhangá. Esse começa a gemer de dor e foge para fora do palco).

PEDRO Vocês estão sentindo esse cheiro de queimado!

BETO Os mapinguaris ao fugirem botaram fogo no museu!

JOCA Precisamos fazer algo!

PEDRO Vamos logo! Vocês dois vão atrás de ajuda! Eu e Tupã tentaremos apagar o incêndio! Vamos! Vamos! (Todos saem de cena).


CENA VI

(Voz em off – jornalista, repórter e Pedro)

VOZ EM OFF Ontem à noite, um grande incêndio foi evitado no museu do Ipiranga. Um grupo de garotos que estava passando no local e acabaram acionando o corpo de bombeiro a tempo. Felizmente, o incêndio foi contido antes que pudesse atingir o acervo do museu ou abalar a estrutura do prédio. No museu, nossa repórter, entrevista agora um dos garotos, o jovem Pedro.


REPÓRTER (Entrando em cena, acompanhado por Pedro) Então foi isso! Vocês estavam vindo de uma festa, quando viram um clarão e, sem pensar duas vezes, acionaram o corpo de bombeiros?

PEDRO Isso mesmo, senhora.

REPÓRTER E como vocês fizeram isso?

PEDRO Nós saímos gritando até que alguém nos ouviu!

REPÓRTER E pelo visto a estratégia deu certo!

PEDRO Se o grito deu certo com Dom Pedro I, por que não haveria de dar certo conosco, não é mesmo?

REPÓRTER Você gostaria de dizer algo em rede nacional!

PEDRO Gostaria sim!

REPÓRTER Então diga, meu jovem!

PEDRO Edna, onde quer que esteja… Obrigado por tudo! Você foi minha amiga, foi a mãe que eu não tive e acreditou em mim, mesmo quando eu não acreditava!

REPÓRTER Quem é Edna, meu jovem?

PEDRO Edna é a minha professora de história.




FIM DO TERCEIRO ATO

PANO