Saudações! Bem-vindo ao meu planeta, caro internauta! Aqui, neste "blogmundo", você encontrará os mais exóticos espécimes de gêneros textuais! Alguns são divertidos, outros emocionantes! Outros, porém, podem abrir tua mente e mostrar que educação, informação, diversão e cultura podem conviver harmoniosamente em um mesmo espaço ou por todo o universo! Além de textos de minha própria autoria, você encontrará textos de autores consagrados também! (Contato: profirmeza@gmail.com)
terça-feira, 26 de abril de 2011
A LEI DO SILÊNCIO (WALCYR CARRASCO)
Três horas da manhã. O vizinho está dando uma festa anos 70. Não fui convidado. Mas é como se estivesse lá dentro. O som invade meu quarto. Faço as contas: pela seleção musical, a turma deve andar na maturidade. Quanto tempo um bando de cinqüentões agüenta ficar saltitando na sala? Eis a resposta: muito! Muitíssimo! A música só pára depois das 4. Volto às cobertas. Inicia-se uma sucessão de barulhos de alarmes de carros sendo desligados. Piiii. Pum. Uóóóóó. Suporto, esperançoso. Os convidados partem! Oh, não! Um grupo fica na minha esquina. Conversando em altos brados. Rindo. Dá vontade de atirar uma bacia d'água! Reflito:
– Impossível resistirem tanto tempo no frio.
Quem disse? Fazem piadas. Flertam. Marcam encontros. Finalmente, quando vão embora, meus olhos ardem. Caio na cama. Acordo poucas horas depois com o ruído de uma serra elétrica. É a obra do vizinho da frente. Em pleno sábado. Cedo! Depois da 1 da tarde, vou falar com o mestre-de-obras.
– Vocês já deviam ter parado.
– É que a gente está com pressa de terminar.
Eu, como fico?
Uma outra casa tem um cachorrinho que late e geme a noite toda. Noite após noite! Nunca ouvi os moradores pedirem para ficar quieto. O cachorro não tem culpa. Os donos deviam estar atentos! Soube de uma obra, recentemente, em um apartamento gigantesco no centro da cidade, onde o morador de baixo chamou a polícia para parar com as marteladas fora de horário. O de cima, ofendidíssimo, ameaçou pular no seu pescoço, porque estava atrapalhando a reforma! Sem falar nas obras públicas. Alguém já enfrentou mudanças na tubulação de gás, com a britadeira na calçada durante a noite inteira? Já passei por isso, durante uns quinze dias. Depois de me revirar na cama durante horas, eu me levantava. Impossível ler. Sentava na sala, esperando o dia. Paravam de manhãzinha. Era tão ruim que eu até ficava aliviado com o barulho do congestionamento!
A questão do silêncio não se restringe a obras, cães e festas. Outro dia dei carona a um casal, depois de uma reunião de trabalho. O rapaz sentou no banco de trás. Ligou o celular. Percorremos uns 10 quilômetros até um shopping. Estacionei. Descemos. Entramos em uma doceria. Ela pediu por ele. Sentamos. Ele continuava na ligação. Esbravejando:
– Veja lá o que está acontecendo! Assim não dá!
Eu e a moça não conseguíamos falar, tal a altura da conversa. Comemos o bolo à espera para falarmos de nossos próprios negócios. Ele desligou. Respirei fundo. Cedo demais! O marmanjo iniciou nova ligação!
Um amigo quase perdeu os tímpanos no elevador. Três senhoras conversavam, uma tentando falar mais alto que a outra.
– Espera, deixa que eu tenho uma coisa para contar...
– Só quero terminar o que estava dizendo...
– Ih! Sabem do que me lembrei?
Ao chegar ao térreo, o rapaz estava zonzo!
Há pessoas que falam alto até no ambiente de trabalho. Em uma redação, havia uma jornalista com voz tão estridente que o crítico de cinema comentava:
– A dublagem devia ser obrigatória!
Já presenciei dois vizinhos de apartamento discutindo. O de cima tocava bateria.
– Ensaio com meus filhos, é uma forma de estarmos juntos, em família!
O outro nem sabia o que dizer: como impedir a união entre pais e filhos?
Ninguém percebe que os outros precisam dormir, que voz alta incomoda? Às vezes, tudo que quero na vida é ficar em paz, bem quietinho. Diz o antigo ditado: "A palavra é prata, o silêncio é ouro". Por mais valioso que seja, o silêncio não costuma ser respeitado como merece!
CHIQUE NO ÚLTIMO (WALCYR CARRASCO)
Todo mundo gosta de ser chique. Até quem finge não se importar com isso. Ninguém gosta de espetar a coxa de frango com o garfo e vê-la sair voando para o prato do vizinho. Ou de chegar a uma festa de camiseta e descobrir que os convidados estão de paletó e gravata. Os esnobes costumam dizer:
– Ser chique é ser simples! É ser quem você é.
Puro disfarce! As peruas não querem confessar as horas torturantes no cabeleireiro, os pavões fingem não se importar, enquanto exibem a gravata de grife. Constatei que estava por fora quando uns amigos foram jantar em casa. Servi o vinho. Adoraram. Não resisti:
– É um vinho baratíssimo!
Contei o preço, orgulhoso de minha descoberta. Silêncio geral. Um amigo, enólogo, pegou a garrafa, examinou o rótulo.
– Certamente é de segunda linha! – concluiu.
Quase entrei embaixo da mesa. Não podia ter fechado o bico? Fingido que havia pago 1.000 dólares a garrafa? Oh, língua!
– Chique é nunca falar quanto custa alguma coisa! – aconselhou outro conviva.
Em seguida, foi além. Eu havia colocado as facas do modo errado, com o corte para fora. Uma gafe.
– O corte tem de ficar para dentro. Senão, é muito agressivo.
– Agressivo? Vão pensar que pretendo assassinar alguém? – rosnei.
E chique é dar lição de etiqueta ao dono da casa? Francamente!
Às vezes acho que tentar ser elegante é o melhor jeito de enlouquecer! Dia desses, descobri um grupo na internet – mais precisamente, uma comunidade do Orkut – sobre o que é ser chique. Tem mais de 1.500 pessoas! Ficam batendo papo, trocando dicas. Entrei em uma discussão sobre magreza. Bem a propósito. Nos últimos tempos, a humanidade parece acreditar que bonito é ser esguio como um fio de macarrão cozido. Bonito até pode ser, mas sexy... A discussão pegou fogo. Alguém argumentou:
– Mas o Jô Soares é chique!
Bingo! Ninguém pode argumentar que o gordo mais famoso do país não seja elegante. Tem estilo. Veio o toque decisivo.
– Há uma porção de modelos magérrimas que não podem abrir a boca!
Uma das participantes confessou:
– O salão de beleza é minha segunda casa!
Outra contrapôs:
– Bom é assumir os cabelos cacheados!
Fiquei pensando: por que tantas mulheres veneram cabelos lisos? Escaldam a cabeça. Fazem chapinha?
Acompanhei uma longa discussão sobre se escarpim alto combina com saia curta. A conclusão foi: sim! Desde que seja preto com saia escura.
Gravata com camisa de manga curta? Reprovadíssimo! Pior mesmo, homem de bermuda, sapato social e meia esticadinha. Horror dos horrores, a bolsa pochete.
– Ainda mais de couro! – alvejou uma garota.
Comprovei: pantufas têm seu charme. Existem de leõezinhos, de joaninhas, de cãezinhos.
– Tenho uma de sapinhos que levo para todo lugar. Uma porção de gente quer saber onde comprei! – revelou uma jovem.
Um tema conquistou a unanimidade: adesivo de carro é brega. O grupo da internet fez um ranking dos piores:
"Nas curvas do teu corpo capotei meu coração".
"Aqui só entra avião".
"Nóis capota mais num breca".
"Tá véio mais tá pago".
Todo mundo fez piada. Até que uma garota confessou:
– Sempre tive horror de adesivo de carro. Mas não resisti e botei a foto de meu cachorrinho colada, bem no cantinho...
Unanimidade geral novamente: cachorrinho pode! Gostei. Não passo o tempo todo querendo ser chique. Também, não pretendo ser confundido com um homem das cavernas! Ser chique pode não ser a coisa mais importante do mundo. Mas que é gostoso... ah, é!
GENTILEZA AO AVESSO (WALCYR CARRASCO)
Não me conformo com certos comentários corteses. Havia um bom tempo, eu estava jogando vôlei. Saltei para rebater a bola. Aterrissei na quadra de cimento. Ralei a perna. Fui para o banco. A coxa em chamas. Que felicidade! Veio um colega. Deu o maior apoio:
– Não foi nada.
Como? Nem podia sofrer em paz? Já vi a situação se repetir mil vezes. A criança cai de boca no chão do shopping. A mãe garante que "não foi nada!". A modelo desaba na passarela. Tornozelo torcido. O contrato, confete. Sempre há um simpático para garantir que não é nada, nada!
Pior é velório. A pessoa com o coração partido. Chega alguém, animador:
– Não chore!
Ué, não pode chorar? Deveria estar jogando uma partida de pingue-pongue? Toda vez que perdi alguma pessoa querida e ouvi esse conselho, tive vontade de sair no tapa.
Se na casa alheia servem um prato pavoroso? Já me aconteceu. Era uma torta de frango com gosto de sapato velho. Cada pedacinho deslizava pela minha garganta feito um pedregulho! Engoli tudo, para não fazer desfeita. A anfitriã colocou outra fatia no meu prato.
– Coma mais um pedacinho!
Ah, frase trágica! Que fazer com a torta? Queria enfiar no bolso, disfarçadamente! Mas, se alguém visse, ainda ia dizer que estava levando comida para casa!
Também fico fora de mim ao ouvir:
– Até que você não está tão mal assim!
Esse mimo costuma ser dito justamente quando a gente tenta cavar um elogio. Chego a um coquetel de mangas arregaçadas, jeans e tênis. Todos os outros convidados estão de terno. Para me sentir à vontade, comento com a garota que me recebe:
– Ih! Acho que errei o traje.
Vem a frase fatídica. Algum ser na face na Terra se acalma a ouvir tal consolo? Não estou tão mal assim? Fico com a sensação de estar péssimo! Existem várias adaptações, uma mais torturante que a outra.
– Você não dirige tão mal assim!
– Você não engordou tanto assim!
A pior de todas:
– Você não está tão velho assim! – quando dito por uma jovem, bem novinha, é doloroso!
Corro ao espelho. Os pés-de-galinha aumentaram?
O cheque volta. O mês está se espichando até o próximo salário! Procuro uma amiga. Não, não vou pedir dinheiro emprestado. Só ambiciono um ombro para me lamentar. Ela diz:
– Não se preocupe!
Belo consolo! Só se for doido! O conselho vem seguido de uma divagação filosófica:
– Não tem do que reclamar! Tem gente muito pior que você!
Sim, é verdade! Há uma multidão em situação ainda mais dramática. Mas e meu rombo no banco? Devo esquecer? Sair cantando pelas ruas?
A adolescente sai para a balada e avisa à mãe:
– Fique sossegada.
Ah, é? A pobre senhora vai ficar calmíssima, enquanto rola a madrugada? Ao amanhecer, a criatura chega trançando as pernas e comenta:
– Viu só? Tudo bem!
É a típica situação em que nada está bem. Não fica bem nem dizer uma coisa dessas! Mas ai da mãe que se rebelar diante da afirmação!
Até assaltantes praticam esse tipo de etiqueta. Um amigo foi pego em um seqüestro-relâmpago. No carro. O sujeito apontou o revólver. Garantiu:
– Nós tamo aqui numa boa. Fica tranqüilo.
Que beleza! Se estavam "numa boa", por que enfiar o cano no nariz!? Haja tranqüilidade!
Ao se separar, uma amiga entrou em guerra com o marido. Os dois quase se esganaram por causa da partilha dos bens. Até a posse do filho entrou na dança! Uma tia idosa quis dar uma força:
– Tudo vai dar certo, é questão de tempo!
Era a prova de que pior não podia ficar! Gentileza por gentileza, quando não há o que dizer, é melhor fugir de uma frase feita.
CERTO OU ERRADO (WALCYR CARRASCO)
A língua portuguesa está mudando. Se é um processo bom ou ruim, tenho minhas dúvidas. Mas é fato. Ao longo dos séculos, o português passou por inúmeras modificações. Já tentei ler textos do século XVIII. Impossíveis de compreender. Mal se reconhece o idioma pátrio. Ultimamente, tudo parece mais rápido. Palavras que ontem não existiam estão incorporadas ao vocabulário. Como o verbo deletar. Vindo do inglês, tornou-se comum com a popularização dos computadores. Significa apagar, eliminar. Já vi uma mocinha comentar sobre um desafeto:
- Deletei o safado da minha vida!
Quem costuma entrar na internet está familiarizado com as incontáveis abreviações. Criou-se um português codificado. Às vezes é preciso decifrar: "kd vc" quer dizer "cadê você?" ou, mais genericamente, "por que você sumiu?". "Blz" é "beleza", uma gíria para expressar concordância. "Rs", "risos". "Aki" é o popular "aqui". E assim por diante. A grafia de palavras com til também tem mudado: "não" é "naum", por exemplo. Ainda me confundo com certos hieróglifos, como :) para indicar um sorriso. Além de uma série de outros sinais, de cujo significado não tenho a menor idéia! Muitas vezes me sinto um mastodonte atolado enquanto o mundo caminha velozmente.
É bom ou ruim? Continuo a me perguntar! Em alguns casos, é péssimo. Raramente vejo o "há" grafado de maneira correta. Costumam esquecer o "H". É de doer, pois demonstra a falta de alguns rudimentos básicos. Em legendas de cinema, já cansei de ver a grafia errada: "a muito tempo..." Mesmo em jornais, eventualmente. Talvez seja inevitável: o "H" corre o risco de desaparecer, pela falta de uso. (E de utilidade, convenhamos, pois no início de palavras não tem sentido fonético.)
Ainda usamos expressões surgidas em outras épocas, quando a vida era diferente. Outro dia um amigo fofocou:
- Ela deu com os burros n'água!
Embora nas cidades grandes ninguém mais ande de carroça nem corra o risco de atolar com os quadrúpedes. Quando, certa vez, escrevi uma história de época, analisava as expressões dentro do significado histórico para saber se eram adequadas ou não. Um personagem falava:
- Comi à tripa forra!
"Tripa forra" vem da época da escravidão, quando o escravo forro era livre. Significa que se comeu à vontade, livremente. Em outra ocasião, botei um personagem vociferando:
- Vou te tirar do meu caderninho!
Um pesquisador me alertou:
- Na época as pessoas não tinham telefone. Só se passou a botar e tirar pessoas do "caderninho" ao surgir o hábito de anotar nomes e números.
Formas de falar logo ficarão obsoletas. Um ex com dor-de-cotovelo ainda pode reclamar:
- Ih! Ela queimou meu filme!
As máquinas fotográficas ainda têm filmes. Do jeito que as coisas vão, em breve todas serão digitais. Surgirá outro jeito de dizer a mesma coisa.
Aprender a usar a gramática, tempos verbais e a grafia correta é uma maneira de treinar o raciocínio. Quem não sabe falar ou escrever provavelmente não articula bem os pensamentos. Tenho medo de que certas mudanças sejam fruto de escolas péssimas, deficiências de aprendizado ou, simplesmente, preguiça. Mas também é preciso aceitar a evolução!
Portanto, nem tanto ao mar nem tanto à terra! Ei... Acho que essa expressão vem dos tempos em que marinheiros ainda saíam em busca de novos mundos! Na época, era moderníssima! Mais um motivo para apreciar nossas modernidades! Cada época se espelha em um modo de falar, ou a vaca vai para o brejo, ou a gente cai do cavalo, ou entra em um buraco negro. Fascinante é saber que a língua, enfim, é viva!
- Walcyr Carrasco, Revista VEJA
- Deletei o safado da minha vida!
Quem costuma entrar na internet está familiarizado com as incontáveis abreviações. Criou-se um português codificado. Às vezes é preciso decifrar: "kd vc" quer dizer "cadê você?" ou, mais genericamente, "por que você sumiu?". "Blz" é "beleza", uma gíria para expressar concordância. "Rs", "risos". "Aki" é o popular "aqui". E assim por diante. A grafia de palavras com til também tem mudado: "não" é "naum", por exemplo. Ainda me confundo com certos hieróglifos, como :) para indicar um sorriso. Além de uma série de outros sinais, de cujo significado não tenho a menor idéia! Muitas vezes me sinto um mastodonte atolado enquanto o mundo caminha velozmente.
É bom ou ruim? Continuo a me perguntar! Em alguns casos, é péssimo. Raramente vejo o "há" grafado de maneira correta. Costumam esquecer o "H". É de doer, pois demonstra a falta de alguns rudimentos básicos. Em legendas de cinema, já cansei de ver a grafia errada: "a muito tempo..." Mesmo em jornais, eventualmente. Talvez seja inevitável: o "H" corre o risco de desaparecer, pela falta de uso. (E de utilidade, convenhamos, pois no início de palavras não tem sentido fonético.)
Ainda usamos expressões surgidas em outras épocas, quando a vida era diferente. Outro dia um amigo fofocou:
- Ela deu com os burros n'água!
Embora nas cidades grandes ninguém mais ande de carroça nem corra o risco de atolar com os quadrúpedes. Quando, certa vez, escrevi uma história de época, analisava as expressões dentro do significado histórico para saber se eram adequadas ou não. Um personagem falava:
- Comi à tripa forra!
"Tripa forra" vem da época da escravidão, quando o escravo forro era livre. Significa que se comeu à vontade, livremente. Em outra ocasião, botei um personagem vociferando:
- Vou te tirar do meu caderninho!
Um pesquisador me alertou:
- Na época as pessoas não tinham telefone. Só se passou a botar e tirar pessoas do "caderninho" ao surgir o hábito de anotar nomes e números.
Formas de falar logo ficarão obsoletas. Um ex com dor-de-cotovelo ainda pode reclamar:
- Ih! Ela queimou meu filme!
As máquinas fotográficas ainda têm filmes. Do jeito que as coisas vão, em breve todas serão digitais. Surgirá outro jeito de dizer a mesma coisa.
Aprender a usar a gramática, tempos verbais e a grafia correta é uma maneira de treinar o raciocínio. Quem não sabe falar ou escrever provavelmente não articula bem os pensamentos. Tenho medo de que certas mudanças sejam fruto de escolas péssimas, deficiências de aprendizado ou, simplesmente, preguiça. Mas também é preciso aceitar a evolução!
Portanto, nem tanto ao mar nem tanto à terra! Ei... Acho que essa expressão vem dos tempos em que marinheiros ainda saíam em busca de novos mundos! Na época, era moderníssima! Mais um motivo para apreciar nossas modernidades! Cada época se espelha em um modo de falar, ou a vaca vai para o brejo, ou a gente cai do cavalo, ou entra em um buraco negro. Fascinante é saber que a língua, enfim, é viva!
- Walcyr Carrasco, Revista VEJA
DESCASCAR O ABACAXI (WALCYR CARRASCO)
O início de um ano é repleto de boas intenções. Faço planos. Pretendo, por exemplo, me dedicar ao rapel. Não, nunca pratiquei. Acho o máximo ficar dependurado numa montanha. Até agora, só encontrei uma escola, que ensina a técnica em viadutos. Tive medo de acabar em cima do capô de um carro, no primeiro escorregão. Um amigo me indicou uma escola em Brotas. Talvez. Em 2008 (sim, já ando fazendo planos a longo prazo), espero ter coragem para me sacudir como um ioiô gigante de cima de uma ponte. Quem experimentou garante que é o máximo!
Olho também para o ano que passou. Um lance me impressionou. Tomei consciência de quanta raiva a gente carrega. Aconteceu no trânsito, é claro! Um amigo dirigia. Um homem fechou seu carro. Meu amigo xingou. Fez questão de ultrapassar, aos gritos.
– Eu podia ter batido!
– Não bateu, é o que importa – ponderei. – Para que gritar?
– Ele merece. Não devia estar na rua dirigindo.
– Não sabemos o que está acontecendo – insisti. – Pode ser tímido. Ou estar com um problema. Para que brigar?
Meu amigo resmungou. Foi como um clarão. "Quantas vezes não fico com raiva à toa?", pensei. Mil pequenos fatos me enlouquecem no dia-a-dia. Semanas atrás, estava em um restaurante que tinha convênio para estacionar com manobrista. Entreguei meu tíquete para pegar o selinho. O garçom o perdeu. Levantei-me. Briguei. Chamei o gerente.
– Eu acompanho o senhor até lá e explico o que houve – propôs ele.
Não aceitei, insistindo:
– É um absurdo!
Fui pegar o carro, furioso. O rapaz que me atendeu só pediu um documento do veículo. Confirmou que era meu. Em dois minutos o assunto estava resolvido. Mas eu... ah, eu não! Sentia um tremendo mal-estar. Fui para casa com raiva. Não havia sabonete na pia. Chamei a empregada:
– Não pode ficar sem!
– Eu só estava lavando o banheiro, depois ia pôr.
Resmunguei e subi. Corri a olhar as camisas. Uma estava mal passada.
– Tome mais cuidado com minhas camisas.
Queria descontar, de qualquer jeito.
A cidade é estressante. O trânsito, a agitação. Vejo a mim, e a boa parte das pessoas, sempre por um fio. Comecei a meditar sobre o tema.
– Por que as pessoas têm tanta raiva, estão sempre prontas a explodir?
Não conheço nenhum sistema para me livrar da vontade de sacudir alguém. Nem vou parar de sentir raiva – muitas vezes é até uma reação saudável. Quero impedir que ela me faça mal, a meus amigos, a quem me cerca. Dia desses um jovem advogado me enviou uma conta que achei salgada. Tentei brincar com a delicadeza de um elefante:
– Vou mandar uma carta para o Palácio do Planalto, porque você está estourando as metas de inflação – eu disse ao telefone.
– Achou caro? – veio uma voz tímida do outro lado.
– É caso de chamar o Procon.
Silêncio. Em seguida, sério:
– Faz o seguinte. Você me paga quanto quiser.
Parei, surpreso. Só estava querendo um desconto. Ia perder uma amizade.
– Jamais faria isso. Não fique magoado – expliquei. – Se fui grosseiro, desculpe.
Quase ouvi o suspiro de alívio do outro lado.
– A gente vê no próximo trabalho – ele riu. – Mas agora você tem de pagar um jantar no japonês.
– Pago um par de sushis, bem baratinhos! – devolvi.
Rimos um pouco. Impedimos que a raiva tomasse a frente.
É o caso. Talvez seja o esporte, ou meditação, ou tirar humor de situações difíceis. A vida é melhor quando se controla a raiva. Mas e se a situação for espinhosa? Sem a casca, o abacaxi não é doce? Pois é. Neste ano, meu grande plano é aprender a descascar o abacaxi.
Olho também para o ano que passou. Um lance me impressionou. Tomei consciência de quanta raiva a gente carrega. Aconteceu no trânsito, é claro! Um amigo dirigia. Um homem fechou seu carro. Meu amigo xingou. Fez questão de ultrapassar, aos gritos.
– Eu podia ter batido!
– Não bateu, é o que importa – ponderei. – Para que gritar?
– Ele merece. Não devia estar na rua dirigindo.
– Não sabemos o que está acontecendo – insisti. – Pode ser tímido. Ou estar com um problema. Para que brigar?
Meu amigo resmungou. Foi como um clarão. "Quantas vezes não fico com raiva à toa?", pensei. Mil pequenos fatos me enlouquecem no dia-a-dia. Semanas atrás, estava em um restaurante que tinha convênio para estacionar com manobrista. Entreguei meu tíquete para pegar o selinho. O garçom o perdeu. Levantei-me. Briguei. Chamei o gerente.
– Eu acompanho o senhor até lá e explico o que houve – propôs ele.
Não aceitei, insistindo:
– É um absurdo!
Fui pegar o carro, furioso. O rapaz que me atendeu só pediu um documento do veículo. Confirmou que era meu. Em dois minutos o assunto estava resolvido. Mas eu... ah, eu não! Sentia um tremendo mal-estar. Fui para casa com raiva. Não havia sabonete na pia. Chamei a empregada:
– Não pode ficar sem!
– Eu só estava lavando o banheiro, depois ia pôr.
Resmunguei e subi. Corri a olhar as camisas. Uma estava mal passada.
– Tome mais cuidado com minhas camisas.
Queria descontar, de qualquer jeito.
A cidade é estressante. O trânsito, a agitação. Vejo a mim, e a boa parte das pessoas, sempre por um fio. Comecei a meditar sobre o tema.
– Por que as pessoas têm tanta raiva, estão sempre prontas a explodir?
Não conheço nenhum sistema para me livrar da vontade de sacudir alguém. Nem vou parar de sentir raiva – muitas vezes é até uma reação saudável. Quero impedir que ela me faça mal, a meus amigos, a quem me cerca. Dia desses um jovem advogado me enviou uma conta que achei salgada. Tentei brincar com a delicadeza de um elefante:
– Vou mandar uma carta para o Palácio do Planalto, porque você está estourando as metas de inflação – eu disse ao telefone.
– Achou caro? – veio uma voz tímida do outro lado.
– É caso de chamar o Procon.
Silêncio. Em seguida, sério:
– Faz o seguinte. Você me paga quanto quiser.
Parei, surpreso. Só estava querendo um desconto. Ia perder uma amizade.
– Jamais faria isso. Não fique magoado – expliquei. – Se fui grosseiro, desculpe.
Quase ouvi o suspiro de alívio do outro lado.
– A gente vê no próximo trabalho – ele riu. – Mas agora você tem de pagar um jantar no japonês.
– Pago um par de sushis, bem baratinhos! – devolvi.
Rimos um pouco. Impedimos que a raiva tomasse a frente.
É o caso. Talvez seja o esporte, ou meditação, ou tirar humor de situações difíceis. A vida é melhor quando se controla a raiva. Mas e se a situação for espinhosa? Sem a casca, o abacaxi não é doce? Pois é. Neste ano, meu grande plano é aprender a descascar o abacaxi.
A IDADE DAS PALAVRAS (WALCYR CARRASCO)
Já cansei de ver gente madura falando gíria para parecer jovem. O trágico é que, em geral, a gíria é velha! Verbos, adjetivos e substantivos possuem maior permanência. Gíria é volátil. Terrível ver uma senhora madura e plastificada dizendo:
– Eu sou prafrentex!
O termo foi usado lá pela década de 60 para dizer que alguém aceitava comportamentos mais ousados, tipo viajar no fim de semana para a praia com um grupo de amigos, o máximo de liberdade imaginável até então. É passado. Assim como as variações para falar de homem bonito. Houve época em que era "pão", lá pelos anos 80 virou "lasanha". Agora se usa gato, se não estou atrasado. Volta e meia noto uma cinqüentona exclamar à passagem de algum atleta:
– Ai, que pão!
Esse é o mal das gírias. Marcam a juventude de cada um. O tempo passa. Fica difícil mudar o modo de falar. Às vezes ainda ouço um "é uma brasa, mora", usado por Roberto Carlos nos tempos do programa Jovem Guarda, início dos 60. Lembro do sucesso de "boko moko", criado por uma marca de refrigerante para identificar quem era cafona e não tomava a tal bebida. Caiu na boca do povo. Cafona vale? Ou devo dizer "out", como na década de 90?
As palavras expressam sua época. Certa vez estava escrevendo uma novela passada nos anos 20 e coloquei a expressão "vou tirar você do meu caderninho". Meu pesquisador me orientou:
– Naquele tempo poucas pessoas tinham telefone em casa. Não se falava assim.
O tal "caderninho" correspondia à agenda telefônica. Só passou a ser comum quando o aparelho se tornou mais popular.
Para escrever outra novela de época, passada no século XVIII, eu recorria ao raciocínio puro e simples para definir o modo de falar. Descobri que "comer à tripa forra" tinha a ver com o período da escravidão. O negro liberto era "forro". Deduzi que significava comer à vontade.
Outro dia, vendo uma reportagem de televisão, observei uma família simples com o telefone de teclas. Todo mundo tem. Até algum tempo atrás se discava o telefone. Hoje se tecla um número.
Reconheço. Tenho saudade de certos termos. Lembro de meu irmão mais velho dizendo "que carro jóia!". E "olha o broto!". Ou dos amigos nos anos 70, quando fiz faculdade. Freqüente era ouvir "tou numas com ela", equivalente, guardadas algumas proporções, ao "ficar" de hoje em dia.
Que adolescente aceitaria hoje ir a um "mingau dançante"? Vão para a balada, para a "night". Aliás, a maioria foge de mingau e de qualquer delícia que engorde!
Muita gente odeia gíria. Alguns a consideram um dialeto capaz de estraçalhar a língua. Esquecem-se de que, no seu tempo, também a usavam. Não é fácil acompanhar sua evolução. Outro dia ouvi:
– Eu deletei aquele sujeito da minha vida.
É a versão mais atual para "tirei do meu caderninho". No computador, deletar é eliminar. Apagar. Também se fala tranqüilamente:
– Eu estava casado, mas não estou mais.
Não tem nada a ver com casamento formal, necessariamente. Significa que o rapaz em questão viveu um relacionamento forte. Possivelmente, nem moravam sob o mesmo teto.
Eu me confundo: não sei se ainda se fala "hype" para indicar algo que no passado foi "in". Ou que alguém é "fashion", para dizer que está "nos trinques" como nos anos 80. Falar com um jeito antigo é pior do que botar calça boca-de-sino, ícone dos anos 60.
Não há corte de cabelo, Botox ou plástica que resista. Gíria velha denuncia a idade mais do que um festival de rugas!
– Eu sou prafrentex!
O termo foi usado lá pela década de 60 para dizer que alguém aceitava comportamentos mais ousados, tipo viajar no fim de semana para a praia com um grupo de amigos, o máximo de liberdade imaginável até então. É passado. Assim como as variações para falar de homem bonito. Houve época em que era "pão", lá pelos anos 80 virou "lasanha". Agora se usa gato, se não estou atrasado. Volta e meia noto uma cinqüentona exclamar à passagem de algum atleta:
– Ai, que pão!
Esse é o mal das gírias. Marcam a juventude de cada um. O tempo passa. Fica difícil mudar o modo de falar. Às vezes ainda ouço um "é uma brasa, mora", usado por Roberto Carlos nos tempos do programa Jovem Guarda, início dos 60. Lembro do sucesso de "boko moko", criado por uma marca de refrigerante para identificar quem era cafona e não tomava a tal bebida. Caiu na boca do povo. Cafona vale? Ou devo dizer "out", como na década de 90?
As palavras expressam sua época. Certa vez estava escrevendo uma novela passada nos anos 20 e coloquei a expressão "vou tirar você do meu caderninho". Meu pesquisador me orientou:
– Naquele tempo poucas pessoas tinham telefone em casa. Não se falava assim.
O tal "caderninho" correspondia à agenda telefônica. Só passou a ser comum quando o aparelho se tornou mais popular.
Para escrever outra novela de época, passada no século XVIII, eu recorria ao raciocínio puro e simples para definir o modo de falar. Descobri que "comer à tripa forra" tinha a ver com o período da escravidão. O negro liberto era "forro". Deduzi que significava comer à vontade.
Outro dia, vendo uma reportagem de televisão, observei uma família simples com o telefone de teclas. Todo mundo tem. Até algum tempo atrás se discava o telefone. Hoje se tecla um número.
Reconheço. Tenho saudade de certos termos. Lembro de meu irmão mais velho dizendo "que carro jóia!". E "olha o broto!". Ou dos amigos nos anos 70, quando fiz faculdade. Freqüente era ouvir "tou numas com ela", equivalente, guardadas algumas proporções, ao "ficar" de hoje em dia.
Que adolescente aceitaria hoje ir a um "mingau dançante"? Vão para a balada, para a "night". Aliás, a maioria foge de mingau e de qualquer delícia que engorde!
Muita gente odeia gíria. Alguns a consideram um dialeto capaz de estraçalhar a língua. Esquecem-se de que, no seu tempo, também a usavam. Não é fácil acompanhar sua evolução. Outro dia ouvi:
– Eu deletei aquele sujeito da minha vida.
É a versão mais atual para "tirei do meu caderninho". No computador, deletar é eliminar. Apagar. Também se fala tranqüilamente:
– Eu estava casado, mas não estou mais.
Não tem nada a ver com casamento formal, necessariamente. Significa que o rapaz em questão viveu um relacionamento forte. Possivelmente, nem moravam sob o mesmo teto.
Eu me confundo: não sei se ainda se fala "hype" para indicar algo que no passado foi "in". Ou que alguém é "fashion", para dizer que está "nos trinques" como nos anos 80. Falar com um jeito antigo é pior do que botar calça boca-de-sino, ícone dos anos 60.
Não há corte de cabelo, Botox ou plástica que resista. Gíria velha denuncia a idade mais do que um festival de rugas!
sexta-feira, 22 de abril de 2011
O MONSTRO QUE O SISTEMA CRIOU (REALENGO)
Realengo: o monstro que o sistema criou
Sabe aquele monstro? Aquele, que provocou uma verdadeira chacina em uma escola em Realengo, no Rio de Janeiro. Aquele mesmo. Ele nem sempre foi um monstro. Um dia (acreditem!) ele foi criança! Uma criança que o sistema consumiu. Uma criança que foi devorada pelo abandono, pelo tempo e pelas falhas de nossa sociedade, que, com suas políticas de massa e suas ações burocráticas, alimentam as mais alienantes criaturas e seus delírios.
Não estou defendendo o jovem assassino. Longe disto! Nada que este jovem tenha sofrido justifica tamanho ato covarde! Tamanha atrocidade! Não justifica, mas explica muita coisa. Explica um processo de criação de um monstro. A intenção aqui é lançar uma pedra no lago da conscientização para que, desta forma, possa contribuir para uma imunização da sociedade contra estas patologias que nos assolam diariamente, através do crime, da violência e outras aberrações em todos os setores, passando pela escola à sociedade. E evitar que outros monstros sejam gerados. Está na hora de fechar a fábrica e reformar a escola e, consequentemente, a sociedade.
Se fizermos um retrocesso na vida deste jovem, perceberemos que este foi abandonado, passando, posteriormente, por um processo de adoção. Em sua vida escolar, há indícios, segundo reportagens, que sofrera bullying e outros abusos. Depoimentos ainda revelaram um jovem calado, contraído, recluso, que era chamado de “bicha” por uns, “Bin Laden”, por outros, chegando, até mesmo, a ser jogado em uma lixeira. Pois é... a vítima do tempo, virou o monstro hediondo de hoje. Teve treinamento e livre estágio para isso: sua tortuosa vida escolar. Se a escola fosse uma obra de Dante, com certeza, para Wellington seria o inferno. Um inferno que o consumiu e o levou a procurar simpatizantes da exclusão, da dor, da revolta, da frieza e do endurecimento de coração. E o que o sistema fez? Nada! Cadê o assistente social que a escola deveria ter? Cadê o psicólogo que a escola deveria ter? Onde estão? Ninguém notou que o jovem sofria bullying? Ninguém notou que ele era muito introspectivo? Ninguém que notou que Jekill estava se tansformando em Hide? Ninguém notou que o jovem passava por uma metamorfose de Kafka? E caso tenham notado algo, fizeram o quê? São perguntas que até agora estão sem resposta.
O melhor amigo, após a morte da mãe, é o computador, uma verdadeira “roleta russa” de opções, com seus jogos violentos e sites bem propícios, onde pessoas com obsessões em comum, podem se encontrar.
A polícia se questiona como este jovem teve acesso às armas e ao treinamento, pois tinha perícia de atirador. Ora, ora, que perguntinha sem-vergonha! O acesso à arma não é de se espantar: tem mais arma por metro quadrado neste país do que livro ou oportunidade de êxito social. E mais, ele tinha os melhores professores: basta ligarmos um computador ou um videogame e poderemos nos “deliciar” com jogos como Bully, que promove violência e vandalismo dentro de uma escola (os produtores ainda dizem que trata-se de uma sátira! Ah! Estou explodindo de tanto rir!), Counter Strike, neste, o jogador pode desferir vários “head shots” (tiros na cabeça) em seus adversários (Seria este o preferido do assassino?). Lembrando que neste jogo você pode ser aliado ou terrorista, com missões específicas. Será que a vida, ou a subvida (neste caso), imitou a ficção? E temos ainda a série GTA (Grand Thief auto) e suas versões nas quais você pode ser justiceiro, bandido e pode ter dezenas de missões interessantes, como, por exemplo, matar civis, policiais, bandidos, roubar, depredar. Segundo o primo do assassino, ele passava horas na frente do computador, era fissurado por “11 de setembro” e até treinava em um simulador de vôo, lançar um avião sobre o Cristo Redentor (Puxa vida! Até terrorismo a juventude anda importando! Assim não dá!). Olha só quanta coisa “legal” para se colocar nas mãos de um jovem desequilibrado! Não é como acender um estopim? Sssss! Uma hora explode.
Você, caro leitor, pode até dizer que há pessoas que jogam jogos violentos e não ficam alienados e que também há pessoas que sofrem exclusão, abandono ou bullying e nem por isso produzem atrocidades ou entram no crime. Entretanto, até quando vamos colocar nossa segurança e o nosso futuro nas mãos do acaso? Você daria de presente a seu filho uma bomba-relógio ou uma cobra peçonhenta? Tem gente que presenteia! E aloém disso, encaremos os fatos: primeiro apareceu aquele jovem que atirou em pessoas dentro de um cinema, agora este outro jovem que atirou em crianças indefesas em plena sala de aula. O que eles tinham em comum? Ambos fritavam as ideias com jogos violentos! Até quando vamos permitir isto!? Será que já não está na hora de dar um basta nesta situação?
Temos ainda o cinema, que arrasta multidões com seus psicopatas escrotos e sanguinários, tais como o filme “Jogos mortais” e similares que estimulam a violência, banalizando a mesma. As redes sociais, ao mesmo tempo, que unem as pessoas, também agregam malucos em prol de uma mesma idiotice. No Orkut é comum encontrarmos comunidades como “Eu faço merda na escola”, “Minha escola é uma droga”, “A escola é a única droga que não vicia”, “Vamos botar fogo na escola” ou ainda “Terrorismo escolar”, onde alunos e ex-alunos orgulham-se, com nostalgia, de atos de vandalismo em escolas (Quanto incentivo, não!? Um verdadeiro “monstruário”).
Efeitos do Capitalismo, fins dos tempos, convulsão social, dissolução da família e de valores imprescindíveis para o desenvolvimento de atitudes cidadãs, afastamento de Deus, falta de oportunidade. Nem sei por onde começar, mas o que sei é que as pessoas trabalham demais e ganham pouco, tão pouco que um pai e uma mãe saem para trabalhar, delegando todo o processo educativo para a escola. A escola até tenta, mas a concorrência é muito desleal. Nossos heróis são de carne e osso e estão cansados. São muitos os vilões: o acesso a coisas impróprias e violentas, o crime, as drogas, a omissão, a ausência dos pais, que ficam atolados no mercado de trabalho, sem poderem criar um filho direito. E assim quando o sistema não consegue explorar ou dominar as pessoas, transformando-as em tijolos rijos, inertes e frios em um imenso muro de lamentações, acaba criando os seus Franksteins (bandidos, traficantes, insanos e psicopatas). Monstros que se voltam, geralmente, contra os membros mais indefesos da sociedade, que neste caso especificamente, foram as crianças daquela escola em Realengo. Crianças que nada fizeram de errado, não contribuíram para a criação daquele ser abominável que devorou suas vidas covardemente. Botões de rosa que foram ceifados antes do tempo e agora causam uma imensa lacuna na vida de seus pais. Vítimas que pagaram com a própria vida os erros de nossa sociedade.
Portanto, que a dor desta tragédia nos desperte para uma luta, pois o que aconteceu em Realengo poderia ter acontecido na escola de seu filho, caro leitor. Mas que nossa luta não seja cega, sem foco! Vamos lutar contra este sistema que nos destrói e nos consome, pois é o sistema que deveria servir ao homem e não o oposto! Vamos fechar, de uma vez por todas, esta fábrica de monstros na qual nossa sociedade se convertera. Vamos cuidar melhor de nossa casa, de nossos filhos, de nossa vida e de nossa educação, exigindo e lutando por uma escola de qualidade, uma saúde que honre os impostos que pagamos (E olha que são muitos!), um salário que possibilite termos qualidade de vida! E vamos exigir de nossos governantes, aquilo que eles prometeram no palanque de comício, em período de eleição. E, lembre-se, lugar de político vagabundo e corrupto é na lixeira! Não serve nem pra reciclagem! Vamos votar com consciência. Chega de analfabetismo político! Através de trabalho coletivo, envolvendo todos os cidadãos e as autoridades responsáveis, poderemos converter este sistema que cria e potencializa problemas em algo que soluciona e propicia oportunidades a todos os seus membros (Eu disse todos! Sem exclusão). Agindo assim, talvez um dia (quem sabe), poderemos lembrar destas atrocidades e destes monstros terríveis que o sistema criou, como uma triste lembrança de um passado muito distante. Chega de sermos ovelhinhas, esperando um lobo vir nos devorar! Chega de sermos “another brick in the wall!” (Outro tijolo no muro, Pink Floyd). Quebre o muro, construa pontes, construa caminhos, construa uma escola! Uma escola formativa e transformadora! Cuidar da escola é cuidar do nosso amanhã! E para finalizar esta reflexão gostaria de deixar para você, leitor, este trecho de uma música de nosso saudoso John Lennon: “Imagine all the people, living life in peace!” (Imagine todas as pessoas, vivendo a vida em paz!). E que assim seja!
André Luiz Raphael
Profirmeza (Professor Firmeza)
Sabe aquele monstro? Aquele, que provocou uma verdadeira chacina em uma escola em Realengo, no Rio de Janeiro. Aquele mesmo. Ele nem sempre foi um monstro. Um dia (acreditem!) ele foi criança! Uma criança que o sistema consumiu. Uma criança que foi devorada pelo abandono, pelo tempo e pelas falhas de nossa sociedade, que, com suas políticas de massa e suas ações burocráticas, alimentam as mais alienantes criaturas e seus delírios.
Não estou defendendo o jovem assassino. Longe disto! Nada que este jovem tenha sofrido justifica tamanho ato covarde! Tamanha atrocidade! Não justifica, mas explica muita coisa. Explica um processo de criação de um monstro. A intenção aqui é lançar uma pedra no lago da conscientização para que, desta forma, possa contribuir para uma imunização da sociedade contra estas patologias que nos assolam diariamente, através do crime, da violência e outras aberrações em todos os setores, passando pela escola à sociedade. E evitar que outros monstros sejam gerados. Está na hora de fechar a fábrica e reformar a escola e, consequentemente, a sociedade.
Se fizermos um retrocesso na vida deste jovem, perceberemos que este foi abandonado, passando, posteriormente, por um processo de adoção. Em sua vida escolar, há indícios, segundo reportagens, que sofrera bullying e outros abusos. Depoimentos ainda revelaram um jovem calado, contraído, recluso, que era chamado de “bicha” por uns, “Bin Laden”, por outros, chegando, até mesmo, a ser jogado em uma lixeira. Pois é... a vítima do tempo, virou o monstro hediondo de hoje. Teve treinamento e livre estágio para isso: sua tortuosa vida escolar. Se a escola fosse uma obra de Dante, com certeza, para Wellington seria o inferno. Um inferno que o consumiu e o levou a procurar simpatizantes da exclusão, da dor, da revolta, da frieza e do endurecimento de coração. E o que o sistema fez? Nada! Cadê o assistente social que a escola deveria ter? Cadê o psicólogo que a escola deveria ter? Onde estão? Ninguém notou que o jovem sofria bullying? Ninguém notou que ele era muito introspectivo? Ninguém que notou que Jekill estava se tansformando em Hide? Ninguém notou que o jovem passava por uma metamorfose de Kafka? E caso tenham notado algo, fizeram o quê? São perguntas que até agora estão sem resposta.
O melhor amigo, após a morte da mãe, é o computador, uma verdadeira “roleta russa” de opções, com seus jogos violentos e sites bem propícios, onde pessoas com obsessões em comum, podem se encontrar.
A polícia se questiona como este jovem teve acesso às armas e ao treinamento, pois tinha perícia de atirador. Ora, ora, que perguntinha sem-vergonha! O acesso à arma não é de se espantar: tem mais arma por metro quadrado neste país do que livro ou oportunidade de êxito social. E mais, ele tinha os melhores professores: basta ligarmos um computador ou um videogame e poderemos nos “deliciar” com jogos como Bully, que promove violência e vandalismo dentro de uma escola (os produtores ainda dizem que trata-se de uma sátira! Ah! Estou explodindo de tanto rir!), Counter Strike, neste, o jogador pode desferir vários “head shots” (tiros na cabeça) em seus adversários (Seria este o preferido do assassino?). Lembrando que neste jogo você pode ser aliado ou terrorista, com missões específicas. Será que a vida, ou a subvida (neste caso), imitou a ficção? E temos ainda a série GTA (Grand Thief auto) e suas versões nas quais você pode ser justiceiro, bandido e pode ter dezenas de missões interessantes, como, por exemplo, matar civis, policiais, bandidos, roubar, depredar. Segundo o primo do assassino, ele passava horas na frente do computador, era fissurado por “11 de setembro” e até treinava em um simulador de vôo, lançar um avião sobre o Cristo Redentor (Puxa vida! Até terrorismo a juventude anda importando! Assim não dá!). Olha só quanta coisa “legal” para se colocar nas mãos de um jovem desequilibrado! Não é como acender um estopim? Sssss! Uma hora explode.
Você, caro leitor, pode até dizer que há pessoas que jogam jogos violentos e não ficam alienados e que também há pessoas que sofrem exclusão, abandono ou bullying e nem por isso produzem atrocidades ou entram no crime. Entretanto, até quando vamos colocar nossa segurança e o nosso futuro nas mãos do acaso? Você daria de presente a seu filho uma bomba-relógio ou uma cobra peçonhenta? Tem gente que presenteia! E aloém disso, encaremos os fatos: primeiro apareceu aquele jovem que atirou em pessoas dentro de um cinema, agora este outro jovem que atirou em crianças indefesas em plena sala de aula. O que eles tinham em comum? Ambos fritavam as ideias com jogos violentos! Até quando vamos permitir isto!? Será que já não está na hora de dar um basta nesta situação?
Temos ainda o cinema, que arrasta multidões com seus psicopatas escrotos e sanguinários, tais como o filme “Jogos mortais” e similares que estimulam a violência, banalizando a mesma. As redes sociais, ao mesmo tempo, que unem as pessoas, também agregam malucos em prol de uma mesma idiotice. No Orkut é comum encontrarmos comunidades como “Eu faço merda na escola”, “Minha escola é uma droga”, “A escola é a única droga que não vicia”, “Vamos botar fogo na escola” ou ainda “Terrorismo escolar”, onde alunos e ex-alunos orgulham-se, com nostalgia, de atos de vandalismo em escolas (Quanto incentivo, não!? Um verdadeiro “monstruário”).
Efeitos do Capitalismo, fins dos tempos, convulsão social, dissolução da família e de valores imprescindíveis para o desenvolvimento de atitudes cidadãs, afastamento de Deus, falta de oportunidade. Nem sei por onde começar, mas o que sei é que as pessoas trabalham demais e ganham pouco, tão pouco que um pai e uma mãe saem para trabalhar, delegando todo o processo educativo para a escola. A escola até tenta, mas a concorrência é muito desleal. Nossos heróis são de carne e osso e estão cansados. São muitos os vilões: o acesso a coisas impróprias e violentas, o crime, as drogas, a omissão, a ausência dos pais, que ficam atolados no mercado de trabalho, sem poderem criar um filho direito. E assim quando o sistema não consegue explorar ou dominar as pessoas, transformando-as em tijolos rijos, inertes e frios em um imenso muro de lamentações, acaba criando os seus Franksteins (bandidos, traficantes, insanos e psicopatas). Monstros que se voltam, geralmente, contra os membros mais indefesos da sociedade, que neste caso especificamente, foram as crianças daquela escola em Realengo. Crianças que nada fizeram de errado, não contribuíram para a criação daquele ser abominável que devorou suas vidas covardemente. Botões de rosa que foram ceifados antes do tempo e agora causam uma imensa lacuna na vida de seus pais. Vítimas que pagaram com a própria vida os erros de nossa sociedade.
Portanto, que a dor desta tragédia nos desperte para uma luta, pois o que aconteceu em Realengo poderia ter acontecido na escola de seu filho, caro leitor. Mas que nossa luta não seja cega, sem foco! Vamos lutar contra este sistema que nos destrói e nos consome, pois é o sistema que deveria servir ao homem e não o oposto! Vamos fechar, de uma vez por todas, esta fábrica de monstros na qual nossa sociedade se convertera. Vamos cuidar melhor de nossa casa, de nossos filhos, de nossa vida e de nossa educação, exigindo e lutando por uma escola de qualidade, uma saúde que honre os impostos que pagamos (E olha que são muitos!), um salário que possibilite termos qualidade de vida! E vamos exigir de nossos governantes, aquilo que eles prometeram no palanque de comício, em período de eleição. E, lembre-se, lugar de político vagabundo e corrupto é na lixeira! Não serve nem pra reciclagem! Vamos votar com consciência. Chega de analfabetismo político! Através de trabalho coletivo, envolvendo todos os cidadãos e as autoridades responsáveis, poderemos converter este sistema que cria e potencializa problemas em algo que soluciona e propicia oportunidades a todos os seus membros (Eu disse todos! Sem exclusão). Agindo assim, talvez um dia (quem sabe), poderemos lembrar destas atrocidades e destes monstros terríveis que o sistema criou, como uma triste lembrança de um passado muito distante. Chega de sermos ovelhinhas, esperando um lobo vir nos devorar! Chega de sermos “another brick in the wall!” (Outro tijolo no muro, Pink Floyd). Quebre o muro, construa pontes, construa caminhos, construa uma escola! Uma escola formativa e transformadora! Cuidar da escola é cuidar do nosso amanhã! E para finalizar esta reflexão gostaria de deixar para você, leitor, este trecho de uma música de nosso saudoso John Lennon: “Imagine all the people, living life in peace!” (Imagine todas as pessoas, vivendo a vida em paz!). E que assim seja!
André Luiz Raphael
Profirmeza (Professor Firmeza)
quinta-feira, 21 de abril de 2011
Escrever é como dirigir
Escrever é como dirigir, é criar trânsito, movimentar ideias da mente para o papel. E uma vez no papel, após a ignição da primeira palavra, no primeiro parágrafo, deve-se desenvolver o percurso das ideias, dos significados, ou seja, o local onde queremos chegar, o nosso objetivo.
Os veículos para a escrita são como os veículos para a locomoção das pessoas. Pode ser, por exemplo, uma Ferrari, com hastes e pontas em metais cromados, corpo emborrachado - nossa elegante lapiseira (com pneus de aro 0.5 ou 0.7); pode ser um fusquinha bem conservado - lápis bem apontadinho e pequeno de tanto uso; pode ser também um carro surrado, específico para trabalhos difíceis - lápis do pensador - com uma das extremidades mastigadas pelos dentes do pensamento; e, por fim, o carro flex, lápis versatilmente apontado nas duas extremidades, que economizam tempo no posto de abastecimento – o apontador. Temos ainda, a máquina de escrever, o computador e o celular, que poderiam ser associados ao trem-bala e ao avião.
Apesar de todos estes recursos, as pessoas dirigem e escrevem mal. No trânsito muitos morrem diariamente neste Brasilzão de meu Deus, deixando saudades e uma triste lacuna na história de suas famílias. Já no papel, muitos assassinam o português e as ideias, devido à falta de clareza, de coesão e do desuso das regras gramaticais, que equivalem as nossas leis de trânsito. Escrever sem clareza é como dirigir de faróis apagados em noite de blecaute sem saber para onde ir. Escrever sem coesão é como trafegar em labirintos de ruas sem saídas. E não respeitar as regras gramaticais é como não respeitar as regras de trânsito, onde até poderíamos associar a ortografia a um carro sem os equipamentos obrigatórios (cinto, extintor, por exemplo); já a sintaxe, o uso da vírgula e a organização das orações e períodos dentro do texto poderiam ser relacionados à sinalização de trânsito: a placa de “pare”, “proibido estacionar”, o semáforo e outras tantas regras ignoradas em nosso cotidiano.
A escrita ainda nos possibilita outro transporte: a viagem no tempo. Uma fuga do presente através de um saudoso pretérito fotográfico e perfeito, ou um longo pretérito intermitente, imperfeito por não ter fim, e indefinido que ecoa sem pressa de acabar, ou ainda, um pretérito super-herói, que viria antes de qualquer passado - mais-que-perfeito – salvando o presente e determinando o futuro. Também podemos descrever beijos com gerúndios intermináveis (beijando, ando, ando), amor infinitivo em verbos transitivos e muitas outras viagens. Mas as pessoas não dominam bem estas técnicas e é comum em um texto o passado brigar com o presente e o futuro esquecer do passado. E assim, tanto jovens quanto adultos vão atropelando e arrastando as palavras pelo papel sem muito saber para onde ir ou o que estão fazendo, e acabam, sem perceber, colocando dinossauros em espaçonaves, astronautas em cavernas e palhaços em cemitérios.
E por que isto ocorre?
No trânsito, as pessoas passam por um ínfimo e insuficiente período de treinamento, depois realizam uma prova de direção, recebendo ou não a tão sonhada carta de habilitação, para depois poderem dirigir (E que Deus nos acuda!). Uns até dirigem, outros galopam pelas ruas, troteando, relinchando e dando coices, muitas vezes mortais. A escrita, assim como o trânsito, também precisa de treinamento, um treinamento permanente: a leitura e a própria escrita. É isso mesmo, minha gente! Aprender a escrever não é só na sala de aula. Aprender a escrever se aprende escrevendo e insistindo. O professor orienta, instrui, redireciona rotas. Ele é o nosso primeiro GPS, enquanto ainda não internalizamos o nosso. Entretanto, o ciclo de aprendizado efetivo só se completa com a leitura, a escrita e a prática. Aprendeu algo novo, então aplique! Pesquisou, descobriu algo... Aplique! Produza! É através do processo de tentativa e erro, tentativa e acerto, que evoluímos. Felizmente, podemos treinar e aprender em um inofensivo rascunho, enquanto no trânsito, muitos treinam em um poste, em uma batida (Que não é de morango!), muitas vezes, com vítimas fatais.
Quem não gosta de ler ou escrever é porque ainda não descobriu o prazer que isto dá: não engorda, não engravida, não custa nada (apenas um investimento de tempo, concentração, reflexão e disciplina), promove o bem-estar, posto que, ajuda-nos a desabafar ou a expressar opiniões e, ainda, liga-nos a outras pessoas, propiciando contatos e amizades. Aliás, ler e escrever é importante e imprescindível, pois a vida mais cedo ou mais tarde exigirá a nossa competência linguística, seja em um vestibular, concurso público, currículo, requerimento, solicitação, vestibular, concurso público, notificação, entrevista para um emprego, vestibular, concurso público, mudança de cargo, prova de proficiência e etc, etc, etc (Eu já mencionei vestibular e concurso público?).
É preciso que valorizemos o prazer da leitura e da escrita fora dos portões da escola, caso contrário, o aluno pensará que “isto é coisa de escola! Na escola eu faço e ponto!”. Os pais têm que colocar o volante nas mãos do filho e dizer “Abre! Vire a página! Me conte o que entendeu!”. Mas não sejamos hipócritas! Os filhos são o reflexo dos pais. Se um filho não ver o pai ou mãe lendo, não adianta exigir que ele leia como um crítico ou escreva como José Saramago. Estamos falando aqui de uma educação sutil e sensível, que não apenas cria bons hábitos, mas transforma as pessoas. E a transformação começa dentro de casa, pelo exemplo. Leia para o seu filho, leia com ele! Comente as obras, peça para ele comentar. Leve-o a eventos que explorem o universo literário, cultural e artístico (E não me venha com este papo de que não tem tempo! Teve tempo para fazer um filho, tem que ter tempo para cuidar dele! E cuidar direito!). Dinheiro também não é problema: temos bibliotecas, o SESI, o SESC, a prefeitura municipal com maravilhosas atrações culturais gratuitas (Eu disse gratuitas!).
Valorizar a leitura e a escrita exige dedicação de todos os personagens desta história: educadores, pais, alunos, a comunidade, enfim, todos. Só com o envolvimento de todos (repito com redundância assumida este termo!) é que poderemos delegar às gerações futuras a carteira de habilitação efetiva e permanente para o seu desenvolvimento profissional e o pleno exercício de seus direitos e deveres, ou seja a consolidação consciente de sua cidadania. A direção da educação e o volante do futuro estão em nossas mãos. Que todos sejamos ótimos condutores, sem estacionar ou retroceder frente às lombadas e quebra-molas desta estrada pela qual percorre o amanhã.
André Luiz Raphael
Profirmeza
Os veículos para a escrita são como os veículos para a locomoção das pessoas. Pode ser, por exemplo, uma Ferrari, com hastes e pontas em metais cromados, corpo emborrachado - nossa elegante lapiseira (com pneus de aro 0.5 ou 0.7); pode ser um fusquinha bem conservado - lápis bem apontadinho e pequeno de tanto uso; pode ser também um carro surrado, específico para trabalhos difíceis - lápis do pensador - com uma das extremidades mastigadas pelos dentes do pensamento; e, por fim, o carro flex, lápis versatilmente apontado nas duas extremidades, que economizam tempo no posto de abastecimento – o apontador. Temos ainda, a máquina de escrever, o computador e o celular, que poderiam ser associados ao trem-bala e ao avião.
Apesar de todos estes recursos, as pessoas dirigem e escrevem mal. No trânsito muitos morrem diariamente neste Brasilzão de meu Deus, deixando saudades e uma triste lacuna na história de suas famílias. Já no papel, muitos assassinam o português e as ideias, devido à falta de clareza, de coesão e do desuso das regras gramaticais, que equivalem as nossas leis de trânsito. Escrever sem clareza é como dirigir de faróis apagados em noite de blecaute sem saber para onde ir. Escrever sem coesão é como trafegar em labirintos de ruas sem saídas. E não respeitar as regras gramaticais é como não respeitar as regras de trânsito, onde até poderíamos associar a ortografia a um carro sem os equipamentos obrigatórios (cinto, extintor, por exemplo); já a sintaxe, o uso da vírgula e a organização das orações e períodos dentro do texto poderiam ser relacionados à sinalização de trânsito: a placa de “pare”, “proibido estacionar”, o semáforo e outras tantas regras ignoradas em nosso cotidiano.
A escrita ainda nos possibilita outro transporte: a viagem no tempo. Uma fuga do presente através de um saudoso pretérito fotográfico e perfeito, ou um longo pretérito intermitente, imperfeito por não ter fim, e indefinido que ecoa sem pressa de acabar, ou ainda, um pretérito super-herói, que viria antes de qualquer passado - mais-que-perfeito – salvando o presente e determinando o futuro. Também podemos descrever beijos com gerúndios intermináveis (beijando, ando, ando), amor infinitivo em verbos transitivos e muitas outras viagens. Mas as pessoas não dominam bem estas técnicas e é comum em um texto o passado brigar com o presente e o futuro esquecer do passado. E assim, tanto jovens quanto adultos vão atropelando e arrastando as palavras pelo papel sem muito saber para onde ir ou o que estão fazendo, e acabam, sem perceber, colocando dinossauros em espaçonaves, astronautas em cavernas e palhaços em cemitérios.
E por que isto ocorre?
No trânsito, as pessoas passam por um ínfimo e insuficiente período de treinamento, depois realizam uma prova de direção, recebendo ou não a tão sonhada carta de habilitação, para depois poderem dirigir (E que Deus nos acuda!). Uns até dirigem, outros galopam pelas ruas, troteando, relinchando e dando coices, muitas vezes mortais. A escrita, assim como o trânsito, também precisa de treinamento, um treinamento permanente: a leitura e a própria escrita. É isso mesmo, minha gente! Aprender a escrever não é só na sala de aula. Aprender a escrever se aprende escrevendo e insistindo. O professor orienta, instrui, redireciona rotas. Ele é o nosso primeiro GPS, enquanto ainda não internalizamos o nosso. Entretanto, o ciclo de aprendizado efetivo só se completa com a leitura, a escrita e a prática. Aprendeu algo novo, então aplique! Pesquisou, descobriu algo... Aplique! Produza! É através do processo de tentativa e erro, tentativa e acerto, que evoluímos. Felizmente, podemos treinar e aprender em um inofensivo rascunho, enquanto no trânsito, muitos treinam em um poste, em uma batida (Que não é de morango!), muitas vezes, com vítimas fatais.
Quem não gosta de ler ou escrever é porque ainda não descobriu o prazer que isto dá: não engorda, não engravida, não custa nada (apenas um investimento de tempo, concentração, reflexão e disciplina), promove o bem-estar, posto que, ajuda-nos a desabafar ou a expressar opiniões e, ainda, liga-nos a outras pessoas, propiciando contatos e amizades. Aliás, ler e escrever é importante e imprescindível, pois a vida mais cedo ou mais tarde exigirá a nossa competência linguística, seja em um vestibular, concurso público, currículo, requerimento, solicitação, vestibular, concurso público, notificação, entrevista para um emprego, vestibular, concurso público, mudança de cargo, prova de proficiência e etc, etc, etc (Eu já mencionei vestibular e concurso público?).
É preciso que valorizemos o prazer da leitura e da escrita fora dos portões da escola, caso contrário, o aluno pensará que “isto é coisa de escola! Na escola eu faço e ponto!”. Os pais têm que colocar o volante nas mãos do filho e dizer “Abre! Vire a página! Me conte o que entendeu!”. Mas não sejamos hipócritas! Os filhos são o reflexo dos pais. Se um filho não ver o pai ou mãe lendo, não adianta exigir que ele leia como um crítico ou escreva como José Saramago. Estamos falando aqui de uma educação sutil e sensível, que não apenas cria bons hábitos, mas transforma as pessoas. E a transformação começa dentro de casa, pelo exemplo. Leia para o seu filho, leia com ele! Comente as obras, peça para ele comentar. Leve-o a eventos que explorem o universo literário, cultural e artístico (E não me venha com este papo de que não tem tempo! Teve tempo para fazer um filho, tem que ter tempo para cuidar dele! E cuidar direito!). Dinheiro também não é problema: temos bibliotecas, o SESI, o SESC, a prefeitura municipal com maravilhosas atrações culturais gratuitas (Eu disse gratuitas!).
Valorizar a leitura e a escrita exige dedicação de todos os personagens desta história: educadores, pais, alunos, a comunidade, enfim, todos. Só com o envolvimento de todos (repito com redundância assumida este termo!) é que poderemos delegar às gerações futuras a carteira de habilitação efetiva e permanente para o seu desenvolvimento profissional e o pleno exercício de seus direitos e deveres, ou seja a consolidação consciente de sua cidadania. A direção da educação e o volante do futuro estão em nossas mãos. Que todos sejamos ótimos condutores, sem estacionar ou retroceder frente às lombadas e quebra-molas desta estrada pela qual percorre o amanhã.
André Luiz Raphael
Profirmeza
Teoria da literatura - conceitos importantes
O que estuda a teoria da literatura?
A teoria da literatura objetiva-se a estudar a obra, o autor, o leitor e todo o processo que envolve as obras literárias. É com base na teoria da literatura que se fazem as resenhas, as análises, as críticas literárias. É uma base de dados, que permite construir-se um método de reflexão e análise dos textos literários. No cruzamento dos dados da história literária, pode-se estabelecer as mudanças ocorridas no processo histórico com relação ao homem e tudo que o envolve. Neste artigo, citamos alguns conceitos necessários para o entendimento das obras literárias. Sugerimos a leitura do artigo Introdução à teoria literária.
Alguns conceitos
Discurso
Corresponde ao plano de expressão da história. Toda narrativa possue: plano de expressão (plano do discurso) e plano de conteúdo (plano da história).
Espaço
O espaço é toda a organização física que compõe o cenário onde o enredo vai se desenvolve.
Estrutura da obra literária:
- narrador ( a quem se atribue a elaboração do texto uma estória ) - narrativa ( uma estória, um fragmento de estória ou sugestão de estórias )
História
Conjunto de elementos que constituem o significado (conteúdo).
Linguagem
A matéria do escritor.
Literariedade
O foco está no uso da palavra, da forma de expressão. A forma discursiva é rica na expressão, o que se pretende mencionar vai ter um discurso atraente e muito original - as palavras vão ser escolhidas propositalmente para dar um sentido de recriação da realidade. Quando há literariedade o plano de conteúdo é expresso de forma literária, isto é, numa linguagem literária.
Literatura
Manifestação artística cujo material é a (arte que se manifesta por meio do verbo).
Linguagens verbais:
Línguas naturais (português, inglês, etc).
Linguagens não verbais:
Dança, pintura, escultura, música instrumental, etc.
Narrador
Personagem de ficção: sua primeira função é relatar a história.
Narratário
Personagem de ficção. Não se confunde com o leitor. O narrador simula que o narratário seja um leitor de carne e osso.
Obra literária
Uma hipótese permanente - contém uma realidade inventada, fingida, criada pela imaginação do autor. Antigamente era qualquer texto impresso: história, geografia, economia etc. Atualmente o conceito é mais amplo.
Personagens:
- personagem plana: personagem mais definida - maquineísta: ou possui o símbolo da magnitude ou o símbolo da maldade.
- personagem redonda (esférica): mais imprevisível, mais rica, mais perto da verossimilhança.
Polissemia É a característica que possui um signo de ter vários valores semânticos (vários sentidos): Aquele garoto tem um coração de ouro ( garoto muito bondoso ).
Tempo:
- cronológico
- psicológico
Tempo verbal predominante no texto narrativo
Tempos verbais no passado.
Como é uma narração, os tempos verbais aparecem no pretérito (passado): pretérito imperfeito (ia, iam, brincavam, ensinava, aprendia);
pretérito perfeito (foi, derrubaram, confundiram, ensinaram);
pretérito mais-que-perfeito (ficara, entregara, buscara, fizera);
futuro do pretérito (fariam, estudariam, ensinariam).
Texto literário
- Enfatiza a função poética. Enfatiza a mensagem. Ele pode ter um caráter ficcional mas necessariamente ele não tem que ser ficcional.
- O texto literário possui linguagem conotativa, figurada. Tem função poética. Há todo um trabalho de reconstrução da linguagem para enfatizar a mensagem.
- Características: uso de repetição sonora, palavra e estrutura sintáticas.
Texto não literário
* Enfatiza o conteúdo
* Linguagem predominante é denotativa. Sem função referencial. Volta-se para o contexto, para o assunto, visando a informação (função utilitária).
Verossimilhança
Qualidade que faz a arte parecer verdadeira, apesar de todas as coisas impossíveis que ela possa dizer.
fonte: http://www.lpeu.com.br
A teoria da literatura objetiva-se a estudar a obra, o autor, o leitor e todo o processo que envolve as obras literárias. É com base na teoria da literatura que se fazem as resenhas, as análises, as críticas literárias. É uma base de dados, que permite construir-se um método de reflexão e análise dos textos literários. No cruzamento dos dados da história literária, pode-se estabelecer as mudanças ocorridas no processo histórico com relação ao homem e tudo que o envolve. Neste artigo, citamos alguns conceitos necessários para o entendimento das obras literárias. Sugerimos a leitura do artigo Introdução à teoria literária.
Alguns conceitos
Discurso
Corresponde ao plano de expressão da história. Toda narrativa possue: plano de expressão (plano do discurso) e plano de conteúdo (plano da história).
Espaço
O espaço é toda a organização física que compõe o cenário onde o enredo vai se desenvolve.
Estrutura da obra literária:
- narrador ( a quem se atribue a elaboração do texto uma estória ) - narrativa ( uma estória, um fragmento de estória ou sugestão de estórias )
História
Conjunto de elementos que constituem o significado (conteúdo).
Linguagem
A matéria do escritor.
Literariedade
O foco está no uso da palavra, da forma de expressão. A forma discursiva é rica na expressão, o que se pretende mencionar vai ter um discurso atraente e muito original - as palavras vão ser escolhidas propositalmente para dar um sentido de recriação da realidade. Quando há literariedade o plano de conteúdo é expresso de forma literária, isto é, numa linguagem literária.
Literatura
Manifestação artística cujo material é a (arte que se manifesta por meio do verbo).
Linguagens verbais:
Línguas naturais (português, inglês, etc).
Linguagens não verbais:
Dança, pintura, escultura, música instrumental, etc.
Narrador
Personagem de ficção: sua primeira função é relatar a história.
Narratário
Personagem de ficção. Não se confunde com o leitor. O narrador simula que o narratário seja um leitor de carne e osso.
Obra literária
Uma hipótese permanente - contém uma realidade inventada, fingida, criada pela imaginação do autor. Antigamente era qualquer texto impresso: história, geografia, economia etc. Atualmente o conceito é mais amplo.
Personagens:
- personagem plana: personagem mais definida - maquineísta: ou possui o símbolo da magnitude ou o símbolo da maldade.
- personagem redonda (esférica): mais imprevisível, mais rica, mais perto da verossimilhança.
Polissemia É a característica que possui um signo de ter vários valores semânticos (vários sentidos): Aquele garoto tem um coração de ouro ( garoto muito bondoso ).
Tempo:
- cronológico
- psicológico
Tempo verbal predominante no texto narrativo
Tempos verbais no passado.
Como é uma narração, os tempos verbais aparecem no pretérito (passado): pretérito imperfeito (ia, iam, brincavam, ensinava, aprendia);
pretérito perfeito (foi, derrubaram, confundiram, ensinaram);
pretérito mais-que-perfeito (ficara, entregara, buscara, fizera);
futuro do pretérito (fariam, estudariam, ensinariam).
Texto literário
- Enfatiza a função poética. Enfatiza a mensagem. Ele pode ter um caráter ficcional mas necessariamente ele não tem que ser ficcional.
- O texto literário possui linguagem conotativa, figurada. Tem função poética. Há todo um trabalho de reconstrução da linguagem para enfatizar a mensagem.
- Características: uso de repetição sonora, palavra e estrutura sintáticas.
Texto não literário
* Enfatiza o conteúdo
* Linguagem predominante é denotativa. Sem função referencial. Volta-se para o contexto, para o assunto, visando a informação (função utilitária).
Verossimilhança
Qualidade que faz a arte parecer verdadeira, apesar de todas as coisas impossíveis que ela possa dizer.
fonte: http://www.lpeu.com.br
sábado, 2 de abril de 2011
WILLIAN WILSON (EDGAR ALLAN POE)
Que me seja permitido, no momento, chamar-me William Wilson. A página em branco, que tenho diante de mim, Não deve ser manchada com meu verdadeiro nome. Esse nome já tem sido demais objeto de desprezo, de horror e de ódio para minha família. Os ventos indignados Não têm divulgado, até nas mais longínquas regiões do globo, a sua incomparável infâmia? Oh! de todos os proscritos, o proscrito mais abandonado! - não estás morto para sempre a este mundo, às suas honras, suas flores e aspirações douradas? - e uma nuvem densa, lúgubre, ilimitada, não pende eternamente entre tuas esperanças o céu?
Não desejaria, mesmo que pudesse, encerrar hoje, nestas páginas, a lembrança dos meus últimos anos de indizível miséria e crimes imperdoáveis. Esse período recente de minha vida alcançou subitamente um auge de torpeza. da qual quero apenas determinar a origem. Os homens, em geral, tornam-se vis gradualmente. Mas, de mim, toda virtude se desprendeu num minuto, de repente, como um manto. Da perversidade relativamente comum, encontrei-me, a. passo de gigante, em enormidades maiores que as de Heliogábalo. Permitam-me contar o acaso, o acidente único que me trouxe essa maldição. A morte se aproxima e a sombra que a precede lançou uma influência suavizadora em meu coração. Passando através do sombrio vale, anseio pela simpatia - ia dizer piedade - de meus semelhantes. Desejaria persuadi-los de que fui, de certa maneira, o escravo de circunstâncias que desafiavam todo o controle humano. Desejaria que descobrissem para mim, nos detalhes que lhes vou dar, algum pequeno oásis de fatalidade, num deserto de erros. Queria que concordassem - se é que não podem recusar-se a concordar que, embora este mundo tenha conhecido grandes tentações, jamais um homem foi tentado assim e certamente jamais sucumbiu desta maneira. Será por isso que não conheceu os mesmos sofrimentos? Na verdade não terei vivido num sonho? Não estarei morrendo vítima do horror e do mistério das mais estranhas de todas as visões sublunares?
Descendo de uma raça que se distinguiu, em todos os tempos, por um temperamento imaginativo e facilmente impressionável; e minha primeira infância provou que eu herdara em cheio o caráter de minha família. Avançando em idade, esse caráter desenvolveu-se com mais força, tornando-se, por várias razões, uma causa de séria inquietação para meus amigos e de prejuízo positivo para mim mesmo. Tornei-me voluntarioso, dado aos mais selvagens caprichos, fui presa de paixões indomáveis. Meus pais, que eram de espírito fraco, e atormentados pelos defeitos constitutivos da mesma natureza, pouco podiam fazer para deter as tendências más que me caracterizavam. Fizeram algumas tentativas fracas, mal dirigidas, que fracassaram completamente e que para mim trouxeram um triunfo completo. A partir desse momento, minha voz foi uma lei doméstica e, numa idade em que poucas crianças deixam de obedecer à disciplina, fui abandonado ao meu livre arbítrio e tornei-me senhor de todas as minhas ações exceto de nome.
Minhas primeiras impressões da vida de estudante ligam-se a uma vasta e extravagante casa do estilo elisabetano, numa aldeia sombria da Inglaterra, decorada de numerosas árvores gigantescas e nodosas e da qual todas as casas eram excessivamente antigas. Parecia, na verdade, um lugar de sonho, essa velha cidade venerável, bem própria para encantar o espírito. Neste momento, mesmo, sinto na imaginação o estremecimento do frescor de suas avenidas profundamente sombreadas, respiro as emanações de seus mil bosques e tremo ainda com uma indefinível volúpia à nota profunda e surda do sino, rompendo, a cada hora, com seu rugir súbito e moroso, a quietude da atmosfera sombria na qual se enterrava e adormecia o campanário gótico todo denteado.
Encontro talvez tanto prazer quanto me é possível experimentar ainda, demorando sobre essas minuciosas recordações da escola e de seus sonhos. Mergulhado como me encontro na desgraça - infelicidade, ai de mim! por demais real -, espero que me perdoem procurar um alívio, bem leve e bem curto, nesses detalhes pueris e divagantes. Aliás, embora absolutamente vulgares e risíveis em si mesmos, esses acontecimentos tomam, em minha imaginação, uma importância circunstancial, devido à sua íntima relação com os lugares e a época onde agora distingo as primeiras advertências ambíguas do destino, que desde então me envolveu tão profundamente em sua sombra. Deixem-me pois recordar.
A casa, como disse, era velha e irregular, os terrenos vastos e um alto e sólido muro de tijolos, coroado por uma camada de cimento e de vidro quebrado, os rodeava. Essa fortificação, digna de uma prisão, formava o limite de nosso domínio. Nossos olhares não iam além senão três vezes por semana - uma vez cada sábado à tarde, quando, acompanhados por dois professores, tínhamos permissão para dar passeios curtos em comum, através do campo, nas imediações e duas vezes ao domingo, quando íamos, com a regularidade de tropas em parada, assistir aos ofícios da manhã e da tarde, no único templo da aldeia. O diretor de nossa escola era o pastor dessa igreja. Com que profundo sentimento de admiração e de perplexidade eu costumava contemplá-lo, de nosso banco afastado, na tribuna, quando subia para o púlpito, com um passo solene e lento! Essa personagem venerável, de rosto tão modesto e benigno, de roupa tão bem escovada e caindo de maneira impecavelmente eclesiástica, de peruca tão minuciosamente empoada, rígida e vasta, seria o mesmo homem que havia pouco, com um rosto irascível e a roupa manchada de rapé, fazia executar, férula em mão, as leis draconianas da escola? Oh! Gigantesco paradoxo cuja monstruosidade exclui toda solução!
Num ângulo do muro maciço, uma severa porta, ainda mais maciça, solidamente fechada, guarnecida de ferrolhos e encimada por espigões de ferro denticulados. Como eram profundos os sentimentos de terror que inspirava! Nunca se abria senão para as três saídas e entradas periódicas de que já falei; então, em cada rangido de seus gonzos potentes, encontrávamos uma plenitude de mistério - todo um mundo de observações solenes ou de meditações ainda mais solenes.
O vasto recinto era de forma irregular e dividido em várias partes, das quais três ou quatro das maiores constituíam o pátio de recreio. Era aplainado e recoberto de um saibro fino e duro. Lembro-me bem de que não continha árvores, nem bancos, nada de semelhante. Naturalmente ficava situado atrás da casa. Diante da fachada, estendia-se um pequeno terraço plantado de buxos e outros arbustos, mas não atravessávamos esse recanto sagrado senão em raras ocasiões, por exemplo, o dia da chegada à escola, o dia da partida definitiva, ou então quando um parente ou amigo nos mandava chamar, e seguíamos alegremente para a casa paterna, nas férias de Natal, ou de verão.
Mas a casa! - que estranha e antiga construção! Para mim, que verdadeiro palácio encantado! Realmente, eram infindáveis os seus desvios, as suas incompreensíveis subdivisões. Era difícil dizer com certeza, a determinado momento, se nos encontrávamos no primeiro ou no segundo pavimento. De uma peça a outra, tinha-se sempre a certeza de encontrar dois ou três degraus a subir ou descer. Além disso, as subdivisões laterais eram inúmeras, inconcebíveis, giravam de tal maneira umas sobre as outras, que nossas idéias mais exatas, acerca do conjunto do edifício, não eram muito diferentes daquelas através das quais considerávamos o infinito. Durante os cinco anos de residência ali, nunca fui capaz de determinar, com precisão, em que localidade longínqua ficava situado o pequeno dormitório que me fora designado em comum, com mais dezoito ou vinte outros escolares.
A sala de estudo era a mais vasta da escola e - eu não podia deixar de pensar - até mesmo do mundo inteiro: longuíssima, muito estreita e lugubremente baixa, com janelas em ogiva e teto de carvalho. Num canto afastado, de onde emanava o terror, havia um recinto quadrado, de oito a dez pés, representando o sanctum "durante horas" do nosso diretor, o Reverendo Doutor Bransby. Era uma sólida estrutura, de porta maciça, e, a abri-la na ausência do Dominie, teríamos preferido morrer, da peine forte et dure. Em dois outros ângulos, dois recintos análogos, muito menos reverenciados, sem dúvida, mas ainda assim de um terror bastante considerável. Um era a cátedra do mestre de humanidades e o outro a do professor de inglês e matemática. Espalhados através da sala, inúmeros bancos e cadeiras, terrivelmente carregados de livros maculados pelos dedos e cruzando-se numa irregularidade sem fim - negros, antigos, devastados pelo tempo, tão marcados de letras iniciais, nomes inteiros, figuras grotescas e outras inúmeras obras-primas da faca, que haviam perdido o pouco da forma original que lhes fora designada, em dias muito antigos. Numa extremidade da sala, encontrava-se um enorme balde cheio de água e na outra um relógio de prodigiosa dimensão.
Encerrado entre os muros maciços dessa escola venerável, passei contudo, sem tédio ou repulsa, os anos do terceiro lustro de minha vida. O cérebro fecundo da infância não exige um mundo exterior de incidentes para o ocupar e divertir e a monotonia, aparentemente lúgubre, da escola, era repleta de excitações mais intensas do que todas as que minha juventude, mais amadurecida, exigiu à volúpia, ou minha virilidade, ao crime. Entretanto, julgo dever dizer que meu primeiro desenvolvimento intelectual foi, em grande parte, pouco comum e até mesmo outré. Em geral, os acontecimentos da existência infantil não deixam sobre a humanidade, chegada à idade madura, uma impressão bem definida. Tudo é sombra, cinza, débil e irregular recordação, confusão de fracos prazeres e desgostos fantasmagóricos. Comigo isso não aconteceu. Devo ter sentido em minha infância, com a energia de um homem feito, tudo o que encontro hoje gravado na memória em linhas tão vivas, tão profundas e duráveis como os exergos das medalhas cartaginesas.
E contudo, de fato - do ponto de vista comum do mundo ¯, como havia la tão pouca coisa para relembrar! O despertar, de manhã, a ordem para deitar-se, as lições a aprender, os recitativos, as meias férias periódicas e os passeios, o pátio de recreio, com suas disputas, seus passatempos, suas intrigas, tudo isso, por uma magia psíquica desaparecida, continha em si um desvario de sensação, um mundo rico de incidentes, um universo de emoções variadas e de excitações das mais apaixonadas e embriagadoras. Oh! Le bon temps que ce siècle de fer!
Na realidade, minha natureza ardente, entusiasta, imperiosa fez de mim, dentro em pouco e entre meus camaradas, um caráter marcado, e pouco a pouco, naturalmente. deram-me um ascendente sobre todos os que não eram mais velhos do que eu - sobre todos, exceto um. Era um aluno que, sem qualquer parentesco comigo, tinha o mesmo meu nome de batismo, o mesmo nome de família - circunstância pouco notável, em si - porque meu nome, malgrado a nobreza de minha origem, era um desses nomes vulgares que parecem ter sido, desde tempos imemoriais, por direito de prescrição, a propriedade comum da multidão. Nesta narrativa dei a mim mesmo o nome de William Wilson, fictício, porém não muito distante do verdadeiro. Meu homônimo, somente, entre os que, segundo a fraseologia da escola, compunham a nossa classe, ousava rivalizar comigo nos estudos, nos jogos e nas discussões do recreio, recusar uma crença cega em minhas assertivas e uma submissão completa à minha vontade - em suma contrariar minha ditadura, em todos os casos possíveis. Se jamais existiu sobre a terra um despotismo supremo e sem reservas, é bem o despotismo de um menino de gênio sobre as almas menos enérgicas de seus camaradas.
A rebeldia de Wilson era para mim origem do maior constrangimento, tanto mais que, apesar das bravatas com que eu julgava dever tratá-lo publicamente, a ele e às suas pretensões, sentia, no íntimo, que Wilson me intimidava e não podia deixar de considerar a equanimidade que mantinha tão facilmente diante de mim, como a prova de uma verdadeira superioridade - pois havia de minha parte um esforço perpétuo para não ser dominado. Contudo, essa superioridade, ou antes igualdade, não era verdadeiramente conhecida senão por mim; nossos camaradas, por uma inexplicável cegueira, nem mesmo pareciam desconfiar disso. E, de fato, sua rivalidade, sua resistência e particularmente sua impertinente e irritadiça intervenção em todos os meus desígnios não eram tão manifestas, e antes, confidenciais. Ele parecia igualmente desprovido da ambição que me levava a dominar e da energia apaixonada que me dava os meios para isso. Poder-se-ia crer que, nessa rivalidade, Wilson era dirigido unicamente por um desejo caprichoso de opor-se a mim, de me espantar, ou mortificar; se bem que houvesse casos em que eu não podia deixar de notar, com um sentimento confuso, de surpresa, humilhação e cólera, que ele punha em seus ultrajes, suas impertinências e contradições certos ares de afetuosidade, dos mais intempestivos e, sem dúvida, mais desagradáveis do mundo. Eu não podia compreender uma conduta tão estranha senão supondo-a o resultado de uma suficiência perfeita, permitindo-se o tom vulgar da condescendência e da proteção.
Talvez fosse por esse último traço, na conduta de Wilson - acrescido da nossa homonímia e o fato puramente acidental de nossa entrada simultânea na escola -, que todos. entre nossos condiscípulos das classes superiores, acreditavam que éramos irmãos. Habitualmente, esses estudantes não se informam com muita exatidão quanto aos assuntos dos mais jovens. Já disse antes, ou deveria tê-lo dito, que Wilson não era, nem em grau afastado, parente de minha família. Mas decerto, se fôssemos irmãos, teríamos sido gêmeos: pouco depois de ter deixado a escola do Doutor Bransby soube, por acaso, que o meu homônimo nascera em 19 de janeiro de 1813 - coincidência bastante notável, sendo esse dia, precisamente, o do meu nascimento.
Pode parecer estranho que, malgrado a contínua ansiedade que me causava a rivalidade de Wilson e seu insuportável espírito de contradição, eu não era levado a odiá-lo completamente. Sem dúvida, quase todos os dias tínhamos uma briga, na qual, concedendo-me publicamente os louros da vitória, ele conseguia, de certa maneira, fazer-me sentir que eu não os merecera. Contudo, um sentimento de orgulho, de minha parte, e uma verdadeira dignidade, da dele, nos mantinham sempre em termos de estrita cortesia, apesar de haver muitos pontos de forte identidade no nosso caráter, que faziam despertar em mim o desejo, reprimido talvez pela nossa posição, de transformar aquilo em amizade. Na verdade, é difícil definir, ou mesmo descrever meus verdadeiros sentimentos para com ele: formavam um amálgama extravagante e heterogêneo - uma animosidade petulante que não era ainda ódio, estima, ainda mais respeito, uma boa parte de temor e uma imensa e inquieta curiosidade. É supérfluo acrescentar, para o moralista, que Wilson e eu éramos os mais inseparáveis camaradas.
Foram decerto a anomalia e ambigüidade de nossas relações que jogaram todos os meus ataques contra ele e, francos ou dissimulados, eram numerosos - moldados de ironia ou de troça (a zombaria não causa também excelentes feridas?) em vez de uma hostilidade mais séria e mais determinada. Porém meus esforços, neste ponto, não obtinham regularmente um triunfo perfeito, mesmo quando os planos eram mais engenhosamente maquinados. É que o meu homônimo tinha em seu caráter muito dessa austeridade plena de reserva e de calma que, mesmo deliciando-se com a pungência de suas próprias zombarias, nunca mostra o calcanhar-de-aquiles e foge absolutamente ao ridículo. Não podia assim encontrar nele senão um ponto vulnerável: era constituído por um detalhe físico que, vindo talvez de uma enfermidade de seu organismo, teria sido poupado por algum outro antagonista menos encarniçado do que eu: meu rival tinha no aparelho vocal uma fraqueza que o impedia de jamais erguer a voz acima de um sussurro muito baixo. E eu não deixava de tirar, dessa imperfeição, toda a pobre vantagem que estava em meu poder.
Várias eram as represálias de Wilson; tinha, particularmente, esse gênero de malícia que me perturbava de maneira intolerável. Como tivera, no início, a sagacidade de descobrir que uma coisa tão insignificante podia mortificar-me, eis uma questão que jamais pude resolver; mas, assim que a descobriu, habitualmente me atormentava com isso. Sempre sentira aversão por meu infeliz nome de família tão deselegante, e por meu prenome tão vulgar ou mesmo absolutamente plebeu. Essas sílabas eram um veneno para meus ouvidos e quando, no dia de minha chegada, apresentou-se na escola um segundo William Wilson, odiei-o pela fato de ter esse nome e por ser também o de um estranho - um estranho que seria a causa de sua dupla repetição, que estaria permanentemente em minha presença e cujas atividades, na rotina da vida do colégio, seriam muitas vezes e inevitavelmente confundidas com as minhas, devido a essa detestável coincidência.
O sentimento de irritação criado por esse acidente tornou-se mais vivo, a cada circunstância que tendia a focalizar toda a semelhança moral entre meu rival e mim. Não havia notado ainda senão o fato extraordinário de sermos da mesma idade; mas via agora que éramos da mesma altura e havia uma semelhança singular em nossa fisionomia e nossas feições. Exasperava-me igualmente o rumor que corria sobre nosso parentesco e a que geralmente se dava crédito, nas classes superiores. Numa palavra, nada poderia causar-me preocupação mais séria (embora eu ocultasse com o maior cuidado todo sintoma dessa perturbação) do que uma alusão qualquer à semelhança entre nós, em relação ao espírito, à pessoa ou ao nascimento. Mas, na verdade, não tinha razão alguma para acreditar que essa semelhança (excetuando o fato do parentesco e de tudo o que o próprio Wilson sabia ver) tivesse jamais sido assunto de comentários ou mesmo notada por nossos camaradas de classe. Que ele a observasse em todos os sentidos e com tanta atenção quanto eu próprio, era evidente, mas que tivesse podido descobrir em tais circunstâncias uma mina tão rica de contrariedades, não o posso atribuir, como já disse, senão à sua penetração mais do que comum.
Wilson dava-me a réplica com uma perfeita imitação de mim mesmo - gestos e palavras - e representava admiravelmente o seu papel. Meu traje era coisa fácil de copiar, meu andar, minha atitude geral, ele fizera seus sem dificuldade e, a despeito de seu defeito constitutivo, nem mesmo minha voz lhe havia escapado. Naturalmente, não tentava os tons elevados, mas a clave era idêntica e sua voz, apesar de falar baixo, transformou-se em perfeito eco da minha.
A que ponto esse curioso retrato (porque não posso chamá-lo propriamente uma caricatura) me atormentava, é o que nem ouso tentar dizer. Não me restava senão um consolo: é que a imitação, segundo me parecia, era notada apenas por mim e que eu tinha simplesmente de suportar os sorrisos misteriosos e estranhamente sarcásticos do meu homônimo. Satisfeito de haver produzido em meu coração o efeito desejado, parecia expandir-se em segredo sobre a ferida que me infligira e mostrar um desdém singular pelos aplausos públicos que os sucessos de sua engenhosidade lhe teriam facilmente conquistado. Como era possível que nossos camaradas não adivinhassem o seu desígnio, não vissem sua realização e não partilhassem de sua alegria zombeteira? Foi isso, durante muitos meses de inquietação, um mistério insolúvel para mim. Talvez a gradação de sua cópia não fosse logo percebível, ou antes, eu devia minha segurança ao ar de maestria do copista, que desdenhava a letra - coisa que os espíritos obtusos logo notam numa pintura - e não dava senão o perfeito espírito do original, para minha maior admiração e pesar.
Já falei, várias vezes, do desagradável ar de proteção que assumira para comigo e da sua freqüente e oficiosa intervenção em minha vontade. Essa intervenção tomava muitas vezes a forma desagradável de um conselho, que não era dado abertamente, mas sugerido, insinuado. Eu o recebia com uma repugnância que crescia com os anos. Contudo, nossa época já longínqua, quero fazer-lhe a justiça estrita de reconhecer que não me lembro de uma só vez em que as sugestões de meu rival tivessem pactuado com os erros e loucuras tão comuns em sua idade, geralmente destituída de maturidade e experiência; que o seu senso moral, ou seu talento e sua prudência mundana, era muito mais fino que o meu, e hoje eu seria um homem melhor se não tivesse sempre recusado os conselhos daqueles sussurros significativos que me causavam, então, tão-somente ódio cordial e amargo desprezo.
Por isso tornei-me extremamente rebelde à sua odiosa vigilância e detestava cada vez mais abertamente o que considerava sua intolerável arrogância. Já disse que, nos primeiros anos de nossa camaradagem, meus sentimentos para com ele poderiam facilmente ter-se transformado em amizade, mas, durante os últimos meses de minha permanência na escola, embora sua habitual intromissão tivesse diminuído bastante, meus sentimentos, numa proporção quase semelhante, tinham-se inclinado para o verdadeiro ódio. Certa ocasião, ele o percebeu, presumo, e desde então me evitou ou fingiu evitar-me.
Foi pouco mais ou menos na mesma época, se não me falha a memória, numa discussão violenta que tivemos, na qual ele perdeu sua reserva habitual e falava e agia com um desembaraço bem diferente à sua natureza, que descobri, ou imaginei descobrir, em seu tom, sua atitude, enfim, no seu aspecto em geral, algo que a princípio me fez estremecer e depois me interessou profundamente, trazendo-me ao espírito visões obscuras de minha primeira infância lembranças estranhas, confusas, precipitadas, de um tempo no qual minha memória não nascera ainda. Não poderia definir melhor a sensação que me dominou, senão dizendo que me era difícil libertar-me da idéia de já haver conhecido a pessoa que se encontrava diante de mim, em alguma época muito longínqua, em algum ponto do passado, mesmo que infinitamente remoto. Contudo, essa sensação esvaiu-se tão rapidamente como veio; e não a menciono aqui senão para assinalar o dia do último encontro que tive com o meu singular homônimo.
Com suas inumeráveis subdivisões, a velha e vasta casa tinha vários e amplos aposentos, que se comunicavam entre si e serviam de dormitório à maioria dos alunos. Havia contudo (como seria inevitável, num edifício tão impropriamente planejado) uma porção de cantos e recantos fragmentos e aberturas da construção, que a engenhosidade do Doutor Bransby transformara também em dormitórios. Eram porém simples compartimentos, que só poderiam acomodar uma pessoa. Um desses pequenos quartos era ocupado por Wilson.
Uma noite, ao fim do meu quinto ano na escola e imediatamente após a discussão de que falei, aproveitando um momento em que todos dormiam, levantei-me e, com uma lâmpada na mão, dirigi-me, através de um labirinto de corredores estreitos, do meu ao quarto do meu rival. Havia muito planejara pregar-lhe uma peça de mau gosto, mas, até então, sempre fracassara. Tive pois a idéia de pôr o meu plano em prática e resolvi fazê-lo sentir toda a força da maldade de que estava possuído. Cheguei à porta de seu cubículo e entrei sem fazer ruído, deixando à porta a lâmpada com um abajur. Avancei um passo e escutei o som de sua respiração tranqüila. Convencido de que dormia profundamente, voltei à porta, peguei a lâmpada e aproximei-me novamente da cama. Como os cortinados estavam cerrados, abri-os de leve e lentamente, para a execução de meu plano, mas uma luz viva caiu em cheio sobre o adormecido e ao mesmo tempo meus olhos se detiveram sobre sua fisionomia. Olhei; e um entorpecimento, uma enregelante sensação penetraram instantaneamente todo o meu ser. Meu coração palpitou, os joelhos vacilaram, toda a minha alma foi tomada de um horror intolerável e inexplicável. Arquejando, baixei a lâmpada até quase encostá-la no seu rosto. Seriam... seriam mesmo as feições de William Wilson? Vi, sem dúvida, que eram os meus traços, mas tremia como que tomado de um acesso de febre, imaginando que não o eram. Que haveria pois neles para me confundir a tal ponto? Eu o contemplava e meu cérebro girava em torno de milhares de pensamentos incoerentes. Ele não me aparecia assim - seguramente não parecia tal - nas horas ativas de sua vida acordado. O mesmo nome! Os mesmos traços! A entrada na escola no mesmo dia! E, ainda, essa odiosa e inexplicável imitação de minhas maneiras, andar, voz e costume! Estaria, na verdade, nos limites da possibilidade humana que aquilo que eu via agora fosse o simples resultado desse hábito de imitação sarcástica? Tomado de horror, estremecendo, apaguei a lâmpada, saí silenciosamente do quarto e deixei imediatamente o recinto da velha escola, para nunca mais voltar.
Após um lapso de alguns meses vividos em casa de meus pais, em ociosidade absoluta, fui mandado para o colégio de Eton. Esse breve intervalo fora suficiente para enfraquecer em mim a recordação dos acontecimentos na escola Bransby, ou pelo menos operar uma mudança notável na natureza dos sentimentos que essas lembranças me causavam. A realidade, o lado trágico do drama, não existiu mais. Encontrava agora alguns motivos para duvidar do testemunho de meus sentidos e raramente me lembrava da aventura sem admirar-me de quão longe pode ir a credulidade humana, e sem sorrir da prodigiosa força de imaginação que havia herdado de minha família. E a vida que eu levava em Eton não era de molde a diminuir essa espécie de ceticismo. O turbilhão de loucura em que mergulhei imediatamente e sem reflexão tudo varreu, exceto a lembrança de minhas horas passadas, absorvendo imediatamente todas as impressões sólidas e sérias, não deixando em minha lembrança senão as leviandades de minha existência anterior.
Não tenho, contudo, a intenção de descrever aqui a trajetória de meus infames desregramentos - desregramentos que desafiavam as leis e iludiam a vigilância. Três anos de loucuras, gastos sem proveito, só poderiam ter-me dado hábitos de vício, enraizados, e haviam aumentado, de maneira quase anormal, meu desenvolvimento físico. Um dia, após uma semana inteira de dissipações embrutecedoras, convidei um grupo de estudantes, dos mais dissolutos, para uma orgia secreta em meu quarto.
Reunimo-nos a uma hora avançada da noite, porque a nossa orgia devia prolongar-se religiosamente até a manhã. O vinho corria livremente e outras seduções, mais perigosas, talvez, não haviam sido negligenciadas, tanto que quando o alvorecer empalidecia o céu, no oriente, nosso delírio e nossas extravagâncias tinham atingido o auge. Furiosamente exaltado pelas cartas e pela bebida, insistia em fazer um brinde estranhamente indecente, quando minha atenção foi subitamente distraída por uma porta que se abria violentamente e pela voz precipitada de um criado. Disse que uma pessoa, que parecia ter muita pressa, pedia para falar comigo no vestíbulo.
Loucamente excitado pelo vinho, essa interrupção causou-me mais prazer do que surpresa. Precipitei-me, cambaleando, e, após alguns passos, encontrei-me no vestíbulo da casa. Nessa sala, baixa e estreita, não havia nenhuma lâmpada e a única luz que ali entrava era a do alvorecer, muito fraca, que se infiltrava através da janela semicircular. Pisando na soleira, distingui um rapaz pouco mais ou menos da minha estatura, vestindo um roupão de casimira branca, talhado à moda do dia, como o que eu usava naquele momento. A luz fraca me permitiu ver tudo isso; mas os traços do rosto, não os pude distinguir. Mal entrei, ele se precipitou para mim e, segurando-me o braço com um gesto imperativo de impaciência, murmurou em meu ouvido as palavras:
- William Wilson!
Num segundo, tornei-me absolutamente sóbrio.
Havia na maneira do estranho, no tremor nervoso de seu dedo, que erguera entre meus olhos e a luz, qualquer coisa que me causou um espanto completo: mas não era isso o que me emocionara de maneira tão violenta, e sim a importância, a solenidade da admoestação contida na palavra singular, baixa, sibilante, e, acima de tudo, o caráter, o tom, a clave dessas poucas sílabas, simples, familiares e, contudo, misteriosamente sussurradas, que vieram, com mil recordações acumuladas dos dias passados, abater-se em minha alma como uma descarga elétrica. Antes que eu pudesse recobrar os sentidos, ele havia desaparecido.
Embora o fato produzisse sem dúvida um efeito muito vivo sobre minha imaginação desregrada, esse efeito, tão vivo, contudo, se foi em breve esvaindo. Na verdade, durante várias semanas, vivi entregue a investigações mais sérias, ou envolvido numa nuvem de mórbida meditação. Não tentava ocultar a mim mesmo a identidade da singular criatura que se imiscuía de maneira tão obstinada em minha vida e me fatigava com seus conselhos oficiosos. Porém, quem era? Quem era esse Wilson? E de onde vinha? Qual o seu objetivo? Sobre nenhum desses pontos consegui obter resposta satisfatória - e constatei somente, em relação a ele, que um acidente súbito, em sua família, o fizera deixar a escola do Doutor Bransby na tarde do dia em que eu fugira. Mas, depois de algum tempo, deixei de pensar nisso e minha atenção foi inteiramente absorvida pela partida, projetada, para Oxford. Ali, em breve - a vaidade pródiga de meus pais permitindo-me levar um alto padrão e entregar-me à vontade ao luxo, já tão do meu gosto -, vim a rivalizar em prodigalidade com os mais orgulhosos herdeiros dos mais ricos condados da Grã-Bretanha. Estimulado ao vício por semelhantes meios, minha natureza explodiu em breve com um duplo ardor e na louca embriaguez de minhas devassidões calquei aos pés os vulgares entraves da decência. Mas seria absurdo demorar aqui em detalhes de minhas loucuras. Basta dizer que ultrapassei Herodes em dissipações e que, dando um nome a uma multidão de novos desvarios, acrescentei um copioso apêndice ao longo catálogo dos vícios que reinavam então na universidade mais dissoluta da Europa.
Custa a acreditar que eu tivesse decaído a tal ponto, de minha posição de nobreza, procurando familiarizar-me com os mais vis artifícios do jogador de profissão e me tornasse um adepto dessa ciência desprezível, que a praticasse habilmente com o pretexto de aumentar meu rendimento já enorme, à custa de companheiros cujo espírito era mais fraco. Mas foi o que aconteceu. E a própria enormidade desse atentado contra os sentimentos de dignidade e honra era, evidentemente, a principal, se não a única razão da minha impunidade. Quem, pois, entre meus mais devassos camaradas, não teria contestado ao mais evidente testemunho de seus próprios sentidos, a desconfiar de semelhante conduta da parte do alegre, do franco, generoso William Wilson - o mais nobre, o mais liberal dos companheiros de Oxford -, aquele cujas loucuras, diziam meus parasitas, eram apenas as loucuras de uma mocidade e de uma imaginação sem freio, cujos erros não eram senão inimitáveis caprichos, e os vícios mais negros, uma descuidada e soberba extravagância?
Havia dois anos que eu vivia dessa maneira, quando chegou à universidade um jovem de nobreza recente, um parvenu, chamado Glendinning - rico, diziam, como Herodes Ático e cuja riqueza fora também facilmente adquirida. Descobri bem depressa que era de inteligência fraca e, naturalmente, marquei-o como possível vítima de meus talentos. Convidava-o freqüentemente a jogar e deixava-o ganhar somas consideráveis, a fim de prendê-lo mais eficazmente na armadilha. Finalmente, com o meu plano bem estabelecido (procurei-o na intenção inabalável de que esse encontro seria decisivo), no apartamento de um dos nossos camaradas, Preston, íntimo igualmente de ambos, porém, que - faço-lhe essa justiça - não tinha a menor desconfiança quanto ao meu desígnio. A fim de melhor colorir o acontecimento, tive o cuidado de convidar um grupo de oito ou dez pessoas, tendo o mais rigoroso cuidado de fazer com que o aparecimento das cartas parecesse inteiramente acidental e não se fizesse senão sob proposta daquele a quem eu queria lograr. Para resumir tão vil passagem, digo que não negligenciei nenhuma das infames astúcias praticadas da maneira mais banal em tais ocasiões e é de admirar que ainda existam pessoas bastante ingênuas a ponto de caírem como suas vítimas.
Prolongamos muito a nossa vigília, e já era tarde da noite, quando, afinal, consegui fazer de Glendinning meu único adversário. O jogo era o meu favorito: o écarté. Os outros presentes, interessados pelas proporções de nosso jogo, tinham deixado suas cartas e se reuniam em torno de nós. como espectadores. O nosso parvenu, que, durante a primeira parte da noite, eu induzira a beber fartamente, embaralhava, dava as cartas agora de maneira nervosa, estranha, na qual, pensava eu, a embriaguez influía de certo modo, porém não explicava inteiramente. Em muito pouco tempo já se tornara meu devedor de uma grande soma, quando, depois de beber um grande copo de vinho do Porto, fez justamente o que eu havia previsto friamente: propôs que dobrássemos a nossa parada, já absurdamente elevada. Com uma hábil afetação de relutância, e somente depois que minhas recusas repetidas lhe haviam provocado algumas palavras ásperas, que deram ao meu consentimento um tom ofendido, acedi finalmente. O resultado foi o que devia ser: a presa caíra irremediavelmente na armadilha e em menos de uma hora quadruplicara a dívida. Havia algum tempo, seu rosto começara a perder o rubor produzido pelo vinho, mas agora eu percebia, atônito, que sua palidez era verdadeiramente terrível. Digo atônito, porque tomara sobre Glendinning informações minuciosas: davam-no como sendo imensamente rico e as somas que ele perdera até então, embora realmente vastas, não podiam - pelo menos eu supunha - preocupá-lo muito seriamente e ainda menos afetá-lo de maneira a tal ponto violenta. A idéia que se apresentou mais naturalmente ao meu espírito foi que ele ficara perturbado pelo vinho que bebera e, antes para salvaguardar o meu caráter aos olhos de meus camaradas do que por um motivo de desinteresse, ia insistir peremptoriamente para interromper o jogo, quando algumas palavras pronunciadas ao meu lado, entre as pessoas presentes e uma exclamação de Glendinning, demonstrando o mais completo desespero, fizeram-me compreender que eu o levara à ruína total, em condições que, tornando-o objeto da piedade de todos, deveriam tê-lo protegido, mesmo contra os maus ofícios de um demônio.
Que atitude deveria ter sido então a minha, é difícil dizer. A lastimável situação de minha vítima lançara sobre nós um ar de tristeza e constrangimento. Por alguns minutos reinou um silêncio profundo durante o qual eu sentia, malgrado meu, o rosto a formigar, sob os olhares ardentes de desprezo e censura que me eram dirigidos pelos menos endurecidos do grupo. Confessarei, mesmo, que meu coração sentiu-se instantaneamente aliviado do intolerável peso da angústia, pela súbita e extraordinária interrupção que sobreveio. As largas e pesadas portas se escancararam subitamente, com uma impetuosidade tão vigorosa e violenta, que todas as velas se apagaram como por encanto. Mesmo no escuro ainda nos foi possível notar que um estranho entrara; um homem mais ou menos da minha estatura, apertadamente envolvido numa capa. Contudo, agora, as trevas eram completas e podíamos apenas sentir que ele estava entre nós. Antes que qualquer dos presentes voltasse a si do extremo espanto em que nos lançara aquele gesto de violência, ouvimos a voz do intruso:
- Senhores - disse ele, numa voz muito baixa, mas distinta, inesquecível, que atingiu a medula de meus ossos -, senhores, nao procuro desculpar a minha conduta, por que, agindo assim, não faço mais do que cumprir um dever. Sem dúvida, não estão informados sobre o verdadeiro caráter da pessoa que ganhou esta noite uma soma enorme no écarté, tendo como parceiro Lorde Glendinning. Vou assim propor-lhes um meio rápido e decisivo de conseguir essas importantíssimas informações. Examinem, rogo-lhes, sem pressa, o forro do punho de sua manga esquerda e os pacotinhos que serão encontrados nas algibeiras suficientemente vastas de seu roupão bordado.
Enquanto o estranho falava, o silêncio era tão profundo, que se teria ouvido um alfinete cair sobre o tapete. Terminando, ele partiu de repente, tão bruscamente como entrara. Poderia descrever a minha impressão? Será preciso dizer que senti todos os horrores dos danados, no inferno? Decerto, tive pouco tempo para reflexão. Vários braços me agarraram com violência, reacenderam-se imediatamente as luzes. Revistaram-me: no forro de minha manga, encontraram todas as figuras essenciais do écarté e, nos bolsos do meu roupão, um certo número de baralhos exatamente semelhantes aos que usávamos em nossas noitadas, com a única exceção de que os meus eram daqueles chamados, tecnicamente, arrondées: as cartas figuradas ligeiramente convexas nas extremidades mais estreitas e as sem figuras também imperceptivelmente convexas, nos lados mais largos. Graças a essa marcação, a vítima quando corta o baralho ao comprido, como é habitual, dá, inevitavelmente, uma carta figurada ao adversário, ao passo que o trapaceiro, cortando no sentido da largura, jamais dará ao outro algo que lhe possa trazer vantagem.
Uma tempestade de revolta me afetaria menos do que o silencioso desdém e a calma sarcástica com que receberam essa descoberta.
- Sr. Wilson - disse nosso anfitrião, baixando-se para apanhar sob meus pés uma magnífica capa de pele rara -, Sr. Wilson, isto lhe pertence.
Fazia frio e, ao sair de meu quarto, eu pusera sobre a roupa que vestira de manhã uma capa que tirei, ao chegar ao local do jogo.
- Imagino - disse olhando as dobras do manto com um sorriso amargo - que será supérfluo procurar aqui novas provas de sua habilidade. Realmente, estamos fartos. Espero que compreenda a necessidade de deixar Oxford e, de qualquer modo, de sair imediatamente de meus aposentos.
Aviltado, humilhado até a poeira, como estava no momento, é provável que tivesse castigado essa linguagem insultante com violência imediata, se toda a minha atenção não estivesse, nesse momento, detida por um fato dos mais surpreendentes. A capa que eu trouxera era de uma pelica superior - de uma raridade e de um preço tão extravagantes, que não me atrevo a dizer. O modelo também era de minha invenção, pois nessas questões frívolas eu era exigente e levava o dandismo às raias do absurdo. Por isso, quando Preston me entregou o que apanhara no chão, junto à porta da sala - com um espanto quase terror -, percebi que já tinha a minha capa sobre o braço onde a colocara sem prestar atenção, e aquela que agora me davam era uma exata reprodução em todos os detalhes da minha. A singular criatura que me denunciara de maneira tão desastrosa estava, lembro-me bem, envolta numa capa e nenhum dos presentes, exceto eu, usava capa naquela ocasião. Conservei porém uma certa presença de espírito e recebi a capa que Preston me oferecia, coloquei-a - sem que ninguém prestasse atenção - sobre a minha; saí da sala com um desafio ameaçador no olhar e nessa manhã mesmo, antes do alvorecer, fugi precipitadamente de Oxford, em viagem pelo continente, angustiado de horror e vergonha.
Fugi em vão. Meu destino maldito me perseguiu, triunfante, provando-me que seu misterioso poder apenas começava. Mal chegara a Paris, tive outra prova do interesse detestável que esse Wilson tomava pelos meus negócios. Os anos passaram, e não tive trégua. Miserável! Em Roma, com que importuna obsequiosidade, com que ternura, o espectro se interpôs entre mim e a minha ambição! Em Viena... em Berlim!... em Moscou! Na verdade, em que lugar não tinha eu uma razão amarga para maldizê-lo do íntimo do meu coração? Tomado de pânico, fugi enfim de sua impenetrável tirania, como de uma peste até o fim do mundo, fugi, e fugi em vão.
E sempre, sempre interrogando secretamente minha alma, perguntava a mim mesmo: "Quem é ele? De onde vem? Qual o seu objetivo?" Mas não encontrava resposta. E analisava então com um cuidado minucioso as formas, o método e os característicos de sua insolente vigilância. Mas aí, ainda, não encontrava muita coisa que pudesse servir de base a uma conjetura. Era verdadeiramente notável o fato de que das inúmeras vezes em que ele atravessara no meu caminho, recentemente, jamais o fez senão para frustrar planos ou derrotar ações que, se bem sucedidas, teriam redundado em amarga decepção. Pobre justificativa, na verdade, para uma autoridade tão imperiosamente usurpada! Pobre indenização para esses direitos naturais de livre-arbítrio tão obstinada e ofensivamente negados!
Fui obrigado a notar que meu algoz, havia longo tempo, mesmo exercendo escrupulosamente e com hábil destreza a mania de se vestir da mesma maneira que eu, cada vez que interferira na minha vontade, fizera tudo de maneira que eu não pudesse ver o seu rosto. Fosse lá quem fosse esse maldito Wilson, sem dúvida, semelhante mistério era o cúmulo da afetação e da tolice. Poderia ele supor um instante que, como meu conselheiro de Eton, destruidor de minha honra em Oxford, aquele que frustrou minha ambição em Roma, minha vingança em Paris, meu amor apaixonado em Nápoles e, o que ele chamava, erroneamente, a minha avareza, no Egito - nesse ser, meu grande inimigo e meu gênio mau, eu não reconhecia o William Wilson dos meus anos de colégio, o homônimo, o camarada, o rival execrado e temido do colégio Bransby? Impossível! Mas deixem-me descrever a terrível cena final do drama.
Até então, eu me submetera sem reação ao seu imperioso domínio. O sentimento de profundo respeito com o qual me acostumara a considerar o caráter elevado, a sabedoria majestosa, a onipresença e onipotência aparentes de Wilson, acrescentados a uma certa sensação de terror que me inspiravam alguns outros traços de sua natureza e determinados privilégios, tinham criado em mim a idéia de minha fraqueza absoluta, de minha impotência, me haviam aconselhado uma submissão sem reservas, embora cheia de amargura e de repugnância, à sua ditadura arbitrária. Mas, nesses últimos tempos, abandonara-me inteiramente ao vinho e sua influência exasperante sobre meu temperamento hereditário tornava-me cada vez mais relutante a todo controle. Comecei pois a murmurar, a hesitar, a resistir. E seria simplesmente minha imaginação que me induzia a crer que a obstinação de meu algoz diminuiria em razão da minha própria firmeza? É possível, mas em todo caso começava a sentir a inspiração de uma esperança ardente, e acabei nutrindo, no mais secreto de meus pensamentos, a sombria, a desesperada resolução de libertar-me dessa escravidão.
Foi em Roma, durante o carnaval de 18...; encontrava-me num baile à fantasia, no palácio do Duque Di Broglio, de Nápoles. Abusara da bebida, além do habitual, e a atmosfera sufocante dos salões apinhados irritava-me de maneira insuportável. A dificuldade de abrir caminho através da multidão contribuiu ainda mais para exasperar o meu humor, porque eu procurava ansiosamente (não direi com que motivo indigno) a jovem, alegre e bela esposa do velho e extravagante Di Broglio. Com uma confiança bastante imprudente, ela me revelara o segredo da fantasia com que iria ao baile e, como eu acabava de avistá-la de longe, apressei-me para alcançá-la. Nesse momento, senti uma mão pousar de leve em meu ombro - e depois esse inesquecível, profundo e maldito sussurro em meu ouvido!
Tomado de cólera e frenesi, voltei-me bruscamente para aquele que ousara me perturbar e segurei-o com violência pelo colete. Wilson vestia, conforme já esperava, um traje absolutamente semelhante ao meu: capa espanhola de veludo azul, presa por um cinto carmesim do qual pendia uma espada. Uma máscara de seda negra cobria-lhe inteiramente o rosto.
- Miserável! - exclamei com voz rouca de cólera, e cada sílaba que me escapava era como um combustível acrescentado ao fogo de minha ira. - Miserável! Impostor! Vilão maldito! Não seguirás a minha pista... não me atormentarás até a morte! Segue-me, ou apunhalo-te aí onde estás!
E abri caminho, do salão de baile, para uma pequena antecâmara vizinha, arrastando-o irresistivelmente comigo.
Entrando, atirei-o com fúria para longe de mim. Ele cambaleou, de encontro à parede. Fechei a porta, com uma imprecação, e ordenei-lhe que desembainhasse a espada. Wilson hesitou um segundo; depois, com um leve suspiro, tirou silenciosamente a arma e se pôs em guarda.
O combate foi rápido. Eu estava exasperado, sentia desvarios de toda a espécie e, num único braço, a energia e o poder de uma multidão. Em alguns segundos, dominei-o pela força, contra o lambril, e ali, tendo-o à minha mercê, mergulhei várias vezes, golpe após golpe, a espada em seu peito, com uma ferocidade de bruto.
Nesse momento, alguém tentou abrir a porta. Apressei-me em evitar uma intromissão importuna e voltei-me imediatamente para meu adversário que expirava. Porém. que ser humano poderá traduzir suficientemente o espanto, o horror que se apoderaram de mim, ante o espetáculo que se apresentou aos meus olhos? O curto instante, durante o qual me desviara, fora suficiente para produzir, aparentemente, uma mudança material nas disposições do outro extremo da sala. Um vasto espelho - em minha perturbação pareceu-me assim, a princípio - erguia-se no ponto onde antes nada vira; e, enquanto me dirigia tomado de horror, para esse espelho, minha própria imagem, mas com o rosto pálido e manchado de sangue, adiantou-se ao meu encontro, com um passo fraco e vacilante.
Foi o que me pareceu, repito, mas não era. Era meu adversário, Wilson, que diante de mim se contorcia em agonia. Sua máscara e capa jaziam sobre o soalho, no ponto onde ele as lançara. Não havia um fio de sua roupa - nem uma linha em toda a sua figura tão característica e tão singular - que não fossem meus: era o absoluto na identidade!
Era Wilson, mas Wilson sem mais sussurrar agora as palavras, tanto que teria sido possível acreditar que eu próprio falava, quando ele me disse:
- Venceste e eu me rendo. Mas, de agora em diante, também estás morto... morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu existias... e vê em minha morte, vê por esta imagem, que é a tua, como assassinaste absolutamente a ti mesmo.
Não desejaria, mesmo que pudesse, encerrar hoje, nestas páginas, a lembrança dos meus últimos anos de indizível miséria e crimes imperdoáveis. Esse período recente de minha vida alcançou subitamente um auge de torpeza. da qual quero apenas determinar a origem. Os homens, em geral, tornam-se vis gradualmente. Mas, de mim, toda virtude se desprendeu num minuto, de repente, como um manto. Da perversidade relativamente comum, encontrei-me, a. passo de gigante, em enormidades maiores que as de Heliogábalo. Permitam-me contar o acaso, o acidente único que me trouxe essa maldição. A morte se aproxima e a sombra que a precede lançou uma influência suavizadora em meu coração. Passando através do sombrio vale, anseio pela simpatia - ia dizer piedade - de meus semelhantes. Desejaria persuadi-los de que fui, de certa maneira, o escravo de circunstâncias que desafiavam todo o controle humano. Desejaria que descobrissem para mim, nos detalhes que lhes vou dar, algum pequeno oásis de fatalidade, num deserto de erros. Queria que concordassem - se é que não podem recusar-se a concordar que, embora este mundo tenha conhecido grandes tentações, jamais um homem foi tentado assim e certamente jamais sucumbiu desta maneira. Será por isso que não conheceu os mesmos sofrimentos? Na verdade não terei vivido num sonho? Não estarei morrendo vítima do horror e do mistério das mais estranhas de todas as visões sublunares?
Descendo de uma raça que se distinguiu, em todos os tempos, por um temperamento imaginativo e facilmente impressionável; e minha primeira infância provou que eu herdara em cheio o caráter de minha família. Avançando em idade, esse caráter desenvolveu-se com mais força, tornando-se, por várias razões, uma causa de séria inquietação para meus amigos e de prejuízo positivo para mim mesmo. Tornei-me voluntarioso, dado aos mais selvagens caprichos, fui presa de paixões indomáveis. Meus pais, que eram de espírito fraco, e atormentados pelos defeitos constitutivos da mesma natureza, pouco podiam fazer para deter as tendências más que me caracterizavam. Fizeram algumas tentativas fracas, mal dirigidas, que fracassaram completamente e que para mim trouxeram um triunfo completo. A partir desse momento, minha voz foi uma lei doméstica e, numa idade em que poucas crianças deixam de obedecer à disciplina, fui abandonado ao meu livre arbítrio e tornei-me senhor de todas as minhas ações exceto de nome.
Minhas primeiras impressões da vida de estudante ligam-se a uma vasta e extravagante casa do estilo elisabetano, numa aldeia sombria da Inglaterra, decorada de numerosas árvores gigantescas e nodosas e da qual todas as casas eram excessivamente antigas. Parecia, na verdade, um lugar de sonho, essa velha cidade venerável, bem própria para encantar o espírito. Neste momento, mesmo, sinto na imaginação o estremecimento do frescor de suas avenidas profundamente sombreadas, respiro as emanações de seus mil bosques e tremo ainda com uma indefinível volúpia à nota profunda e surda do sino, rompendo, a cada hora, com seu rugir súbito e moroso, a quietude da atmosfera sombria na qual se enterrava e adormecia o campanário gótico todo denteado.
Encontro talvez tanto prazer quanto me é possível experimentar ainda, demorando sobre essas minuciosas recordações da escola e de seus sonhos. Mergulhado como me encontro na desgraça - infelicidade, ai de mim! por demais real -, espero que me perdoem procurar um alívio, bem leve e bem curto, nesses detalhes pueris e divagantes. Aliás, embora absolutamente vulgares e risíveis em si mesmos, esses acontecimentos tomam, em minha imaginação, uma importância circunstancial, devido à sua íntima relação com os lugares e a época onde agora distingo as primeiras advertências ambíguas do destino, que desde então me envolveu tão profundamente em sua sombra. Deixem-me pois recordar.
A casa, como disse, era velha e irregular, os terrenos vastos e um alto e sólido muro de tijolos, coroado por uma camada de cimento e de vidro quebrado, os rodeava. Essa fortificação, digna de uma prisão, formava o limite de nosso domínio. Nossos olhares não iam além senão três vezes por semana - uma vez cada sábado à tarde, quando, acompanhados por dois professores, tínhamos permissão para dar passeios curtos em comum, através do campo, nas imediações e duas vezes ao domingo, quando íamos, com a regularidade de tropas em parada, assistir aos ofícios da manhã e da tarde, no único templo da aldeia. O diretor de nossa escola era o pastor dessa igreja. Com que profundo sentimento de admiração e de perplexidade eu costumava contemplá-lo, de nosso banco afastado, na tribuna, quando subia para o púlpito, com um passo solene e lento! Essa personagem venerável, de rosto tão modesto e benigno, de roupa tão bem escovada e caindo de maneira impecavelmente eclesiástica, de peruca tão minuciosamente empoada, rígida e vasta, seria o mesmo homem que havia pouco, com um rosto irascível e a roupa manchada de rapé, fazia executar, férula em mão, as leis draconianas da escola? Oh! Gigantesco paradoxo cuja monstruosidade exclui toda solução!
Num ângulo do muro maciço, uma severa porta, ainda mais maciça, solidamente fechada, guarnecida de ferrolhos e encimada por espigões de ferro denticulados. Como eram profundos os sentimentos de terror que inspirava! Nunca se abria senão para as três saídas e entradas periódicas de que já falei; então, em cada rangido de seus gonzos potentes, encontrávamos uma plenitude de mistério - todo um mundo de observações solenes ou de meditações ainda mais solenes.
O vasto recinto era de forma irregular e dividido em várias partes, das quais três ou quatro das maiores constituíam o pátio de recreio. Era aplainado e recoberto de um saibro fino e duro. Lembro-me bem de que não continha árvores, nem bancos, nada de semelhante. Naturalmente ficava situado atrás da casa. Diante da fachada, estendia-se um pequeno terraço plantado de buxos e outros arbustos, mas não atravessávamos esse recanto sagrado senão em raras ocasiões, por exemplo, o dia da chegada à escola, o dia da partida definitiva, ou então quando um parente ou amigo nos mandava chamar, e seguíamos alegremente para a casa paterna, nas férias de Natal, ou de verão.
Mas a casa! - que estranha e antiga construção! Para mim, que verdadeiro palácio encantado! Realmente, eram infindáveis os seus desvios, as suas incompreensíveis subdivisões. Era difícil dizer com certeza, a determinado momento, se nos encontrávamos no primeiro ou no segundo pavimento. De uma peça a outra, tinha-se sempre a certeza de encontrar dois ou três degraus a subir ou descer. Além disso, as subdivisões laterais eram inúmeras, inconcebíveis, giravam de tal maneira umas sobre as outras, que nossas idéias mais exatas, acerca do conjunto do edifício, não eram muito diferentes daquelas através das quais considerávamos o infinito. Durante os cinco anos de residência ali, nunca fui capaz de determinar, com precisão, em que localidade longínqua ficava situado o pequeno dormitório que me fora designado em comum, com mais dezoito ou vinte outros escolares.
A sala de estudo era a mais vasta da escola e - eu não podia deixar de pensar - até mesmo do mundo inteiro: longuíssima, muito estreita e lugubremente baixa, com janelas em ogiva e teto de carvalho. Num canto afastado, de onde emanava o terror, havia um recinto quadrado, de oito a dez pés, representando o sanctum "durante horas" do nosso diretor, o Reverendo Doutor Bransby. Era uma sólida estrutura, de porta maciça, e, a abri-la na ausência do Dominie, teríamos preferido morrer, da peine forte et dure. Em dois outros ângulos, dois recintos análogos, muito menos reverenciados, sem dúvida, mas ainda assim de um terror bastante considerável. Um era a cátedra do mestre de humanidades e o outro a do professor de inglês e matemática. Espalhados através da sala, inúmeros bancos e cadeiras, terrivelmente carregados de livros maculados pelos dedos e cruzando-se numa irregularidade sem fim - negros, antigos, devastados pelo tempo, tão marcados de letras iniciais, nomes inteiros, figuras grotescas e outras inúmeras obras-primas da faca, que haviam perdido o pouco da forma original que lhes fora designada, em dias muito antigos. Numa extremidade da sala, encontrava-se um enorme balde cheio de água e na outra um relógio de prodigiosa dimensão.
Encerrado entre os muros maciços dessa escola venerável, passei contudo, sem tédio ou repulsa, os anos do terceiro lustro de minha vida. O cérebro fecundo da infância não exige um mundo exterior de incidentes para o ocupar e divertir e a monotonia, aparentemente lúgubre, da escola, era repleta de excitações mais intensas do que todas as que minha juventude, mais amadurecida, exigiu à volúpia, ou minha virilidade, ao crime. Entretanto, julgo dever dizer que meu primeiro desenvolvimento intelectual foi, em grande parte, pouco comum e até mesmo outré. Em geral, os acontecimentos da existência infantil não deixam sobre a humanidade, chegada à idade madura, uma impressão bem definida. Tudo é sombra, cinza, débil e irregular recordação, confusão de fracos prazeres e desgostos fantasmagóricos. Comigo isso não aconteceu. Devo ter sentido em minha infância, com a energia de um homem feito, tudo o que encontro hoje gravado na memória em linhas tão vivas, tão profundas e duráveis como os exergos das medalhas cartaginesas.
E contudo, de fato - do ponto de vista comum do mundo ¯, como havia la tão pouca coisa para relembrar! O despertar, de manhã, a ordem para deitar-se, as lições a aprender, os recitativos, as meias férias periódicas e os passeios, o pátio de recreio, com suas disputas, seus passatempos, suas intrigas, tudo isso, por uma magia psíquica desaparecida, continha em si um desvario de sensação, um mundo rico de incidentes, um universo de emoções variadas e de excitações das mais apaixonadas e embriagadoras. Oh! Le bon temps que ce siècle de fer!
Na realidade, minha natureza ardente, entusiasta, imperiosa fez de mim, dentro em pouco e entre meus camaradas, um caráter marcado, e pouco a pouco, naturalmente. deram-me um ascendente sobre todos os que não eram mais velhos do que eu - sobre todos, exceto um. Era um aluno que, sem qualquer parentesco comigo, tinha o mesmo meu nome de batismo, o mesmo nome de família - circunstância pouco notável, em si - porque meu nome, malgrado a nobreza de minha origem, era um desses nomes vulgares que parecem ter sido, desde tempos imemoriais, por direito de prescrição, a propriedade comum da multidão. Nesta narrativa dei a mim mesmo o nome de William Wilson, fictício, porém não muito distante do verdadeiro. Meu homônimo, somente, entre os que, segundo a fraseologia da escola, compunham a nossa classe, ousava rivalizar comigo nos estudos, nos jogos e nas discussões do recreio, recusar uma crença cega em minhas assertivas e uma submissão completa à minha vontade - em suma contrariar minha ditadura, em todos os casos possíveis. Se jamais existiu sobre a terra um despotismo supremo e sem reservas, é bem o despotismo de um menino de gênio sobre as almas menos enérgicas de seus camaradas.
A rebeldia de Wilson era para mim origem do maior constrangimento, tanto mais que, apesar das bravatas com que eu julgava dever tratá-lo publicamente, a ele e às suas pretensões, sentia, no íntimo, que Wilson me intimidava e não podia deixar de considerar a equanimidade que mantinha tão facilmente diante de mim, como a prova de uma verdadeira superioridade - pois havia de minha parte um esforço perpétuo para não ser dominado. Contudo, essa superioridade, ou antes igualdade, não era verdadeiramente conhecida senão por mim; nossos camaradas, por uma inexplicável cegueira, nem mesmo pareciam desconfiar disso. E, de fato, sua rivalidade, sua resistência e particularmente sua impertinente e irritadiça intervenção em todos os meus desígnios não eram tão manifestas, e antes, confidenciais. Ele parecia igualmente desprovido da ambição que me levava a dominar e da energia apaixonada que me dava os meios para isso. Poder-se-ia crer que, nessa rivalidade, Wilson era dirigido unicamente por um desejo caprichoso de opor-se a mim, de me espantar, ou mortificar; se bem que houvesse casos em que eu não podia deixar de notar, com um sentimento confuso, de surpresa, humilhação e cólera, que ele punha em seus ultrajes, suas impertinências e contradições certos ares de afetuosidade, dos mais intempestivos e, sem dúvida, mais desagradáveis do mundo. Eu não podia compreender uma conduta tão estranha senão supondo-a o resultado de uma suficiência perfeita, permitindo-se o tom vulgar da condescendência e da proteção.
Talvez fosse por esse último traço, na conduta de Wilson - acrescido da nossa homonímia e o fato puramente acidental de nossa entrada simultânea na escola -, que todos. entre nossos condiscípulos das classes superiores, acreditavam que éramos irmãos. Habitualmente, esses estudantes não se informam com muita exatidão quanto aos assuntos dos mais jovens. Já disse antes, ou deveria tê-lo dito, que Wilson não era, nem em grau afastado, parente de minha família. Mas decerto, se fôssemos irmãos, teríamos sido gêmeos: pouco depois de ter deixado a escola do Doutor Bransby soube, por acaso, que o meu homônimo nascera em 19 de janeiro de 1813 - coincidência bastante notável, sendo esse dia, precisamente, o do meu nascimento.
Pode parecer estranho que, malgrado a contínua ansiedade que me causava a rivalidade de Wilson e seu insuportável espírito de contradição, eu não era levado a odiá-lo completamente. Sem dúvida, quase todos os dias tínhamos uma briga, na qual, concedendo-me publicamente os louros da vitória, ele conseguia, de certa maneira, fazer-me sentir que eu não os merecera. Contudo, um sentimento de orgulho, de minha parte, e uma verdadeira dignidade, da dele, nos mantinham sempre em termos de estrita cortesia, apesar de haver muitos pontos de forte identidade no nosso caráter, que faziam despertar em mim o desejo, reprimido talvez pela nossa posição, de transformar aquilo em amizade. Na verdade, é difícil definir, ou mesmo descrever meus verdadeiros sentimentos para com ele: formavam um amálgama extravagante e heterogêneo - uma animosidade petulante que não era ainda ódio, estima, ainda mais respeito, uma boa parte de temor e uma imensa e inquieta curiosidade. É supérfluo acrescentar, para o moralista, que Wilson e eu éramos os mais inseparáveis camaradas.
Foram decerto a anomalia e ambigüidade de nossas relações que jogaram todos os meus ataques contra ele e, francos ou dissimulados, eram numerosos - moldados de ironia ou de troça (a zombaria não causa também excelentes feridas?) em vez de uma hostilidade mais séria e mais determinada. Porém meus esforços, neste ponto, não obtinham regularmente um triunfo perfeito, mesmo quando os planos eram mais engenhosamente maquinados. É que o meu homônimo tinha em seu caráter muito dessa austeridade plena de reserva e de calma que, mesmo deliciando-se com a pungência de suas próprias zombarias, nunca mostra o calcanhar-de-aquiles e foge absolutamente ao ridículo. Não podia assim encontrar nele senão um ponto vulnerável: era constituído por um detalhe físico que, vindo talvez de uma enfermidade de seu organismo, teria sido poupado por algum outro antagonista menos encarniçado do que eu: meu rival tinha no aparelho vocal uma fraqueza que o impedia de jamais erguer a voz acima de um sussurro muito baixo. E eu não deixava de tirar, dessa imperfeição, toda a pobre vantagem que estava em meu poder.
Várias eram as represálias de Wilson; tinha, particularmente, esse gênero de malícia que me perturbava de maneira intolerável. Como tivera, no início, a sagacidade de descobrir que uma coisa tão insignificante podia mortificar-me, eis uma questão que jamais pude resolver; mas, assim que a descobriu, habitualmente me atormentava com isso. Sempre sentira aversão por meu infeliz nome de família tão deselegante, e por meu prenome tão vulgar ou mesmo absolutamente plebeu. Essas sílabas eram um veneno para meus ouvidos e quando, no dia de minha chegada, apresentou-se na escola um segundo William Wilson, odiei-o pela fato de ter esse nome e por ser também o de um estranho - um estranho que seria a causa de sua dupla repetição, que estaria permanentemente em minha presença e cujas atividades, na rotina da vida do colégio, seriam muitas vezes e inevitavelmente confundidas com as minhas, devido a essa detestável coincidência.
O sentimento de irritação criado por esse acidente tornou-se mais vivo, a cada circunstância que tendia a focalizar toda a semelhança moral entre meu rival e mim. Não havia notado ainda senão o fato extraordinário de sermos da mesma idade; mas via agora que éramos da mesma altura e havia uma semelhança singular em nossa fisionomia e nossas feições. Exasperava-me igualmente o rumor que corria sobre nosso parentesco e a que geralmente se dava crédito, nas classes superiores. Numa palavra, nada poderia causar-me preocupação mais séria (embora eu ocultasse com o maior cuidado todo sintoma dessa perturbação) do que uma alusão qualquer à semelhança entre nós, em relação ao espírito, à pessoa ou ao nascimento. Mas, na verdade, não tinha razão alguma para acreditar que essa semelhança (excetuando o fato do parentesco e de tudo o que o próprio Wilson sabia ver) tivesse jamais sido assunto de comentários ou mesmo notada por nossos camaradas de classe. Que ele a observasse em todos os sentidos e com tanta atenção quanto eu próprio, era evidente, mas que tivesse podido descobrir em tais circunstâncias uma mina tão rica de contrariedades, não o posso atribuir, como já disse, senão à sua penetração mais do que comum.
Wilson dava-me a réplica com uma perfeita imitação de mim mesmo - gestos e palavras - e representava admiravelmente o seu papel. Meu traje era coisa fácil de copiar, meu andar, minha atitude geral, ele fizera seus sem dificuldade e, a despeito de seu defeito constitutivo, nem mesmo minha voz lhe havia escapado. Naturalmente, não tentava os tons elevados, mas a clave era idêntica e sua voz, apesar de falar baixo, transformou-se em perfeito eco da minha.
A que ponto esse curioso retrato (porque não posso chamá-lo propriamente uma caricatura) me atormentava, é o que nem ouso tentar dizer. Não me restava senão um consolo: é que a imitação, segundo me parecia, era notada apenas por mim e que eu tinha simplesmente de suportar os sorrisos misteriosos e estranhamente sarcásticos do meu homônimo. Satisfeito de haver produzido em meu coração o efeito desejado, parecia expandir-se em segredo sobre a ferida que me infligira e mostrar um desdém singular pelos aplausos públicos que os sucessos de sua engenhosidade lhe teriam facilmente conquistado. Como era possível que nossos camaradas não adivinhassem o seu desígnio, não vissem sua realização e não partilhassem de sua alegria zombeteira? Foi isso, durante muitos meses de inquietação, um mistério insolúvel para mim. Talvez a gradação de sua cópia não fosse logo percebível, ou antes, eu devia minha segurança ao ar de maestria do copista, que desdenhava a letra - coisa que os espíritos obtusos logo notam numa pintura - e não dava senão o perfeito espírito do original, para minha maior admiração e pesar.
Já falei, várias vezes, do desagradável ar de proteção que assumira para comigo e da sua freqüente e oficiosa intervenção em minha vontade. Essa intervenção tomava muitas vezes a forma desagradável de um conselho, que não era dado abertamente, mas sugerido, insinuado. Eu o recebia com uma repugnância que crescia com os anos. Contudo, nossa época já longínqua, quero fazer-lhe a justiça estrita de reconhecer que não me lembro de uma só vez em que as sugestões de meu rival tivessem pactuado com os erros e loucuras tão comuns em sua idade, geralmente destituída de maturidade e experiência; que o seu senso moral, ou seu talento e sua prudência mundana, era muito mais fino que o meu, e hoje eu seria um homem melhor se não tivesse sempre recusado os conselhos daqueles sussurros significativos que me causavam, então, tão-somente ódio cordial e amargo desprezo.
Por isso tornei-me extremamente rebelde à sua odiosa vigilância e detestava cada vez mais abertamente o que considerava sua intolerável arrogância. Já disse que, nos primeiros anos de nossa camaradagem, meus sentimentos para com ele poderiam facilmente ter-se transformado em amizade, mas, durante os últimos meses de minha permanência na escola, embora sua habitual intromissão tivesse diminuído bastante, meus sentimentos, numa proporção quase semelhante, tinham-se inclinado para o verdadeiro ódio. Certa ocasião, ele o percebeu, presumo, e desde então me evitou ou fingiu evitar-me.
Foi pouco mais ou menos na mesma época, se não me falha a memória, numa discussão violenta que tivemos, na qual ele perdeu sua reserva habitual e falava e agia com um desembaraço bem diferente à sua natureza, que descobri, ou imaginei descobrir, em seu tom, sua atitude, enfim, no seu aspecto em geral, algo que a princípio me fez estremecer e depois me interessou profundamente, trazendo-me ao espírito visões obscuras de minha primeira infância lembranças estranhas, confusas, precipitadas, de um tempo no qual minha memória não nascera ainda. Não poderia definir melhor a sensação que me dominou, senão dizendo que me era difícil libertar-me da idéia de já haver conhecido a pessoa que se encontrava diante de mim, em alguma época muito longínqua, em algum ponto do passado, mesmo que infinitamente remoto. Contudo, essa sensação esvaiu-se tão rapidamente como veio; e não a menciono aqui senão para assinalar o dia do último encontro que tive com o meu singular homônimo.
Com suas inumeráveis subdivisões, a velha e vasta casa tinha vários e amplos aposentos, que se comunicavam entre si e serviam de dormitório à maioria dos alunos. Havia contudo (como seria inevitável, num edifício tão impropriamente planejado) uma porção de cantos e recantos fragmentos e aberturas da construção, que a engenhosidade do Doutor Bransby transformara também em dormitórios. Eram porém simples compartimentos, que só poderiam acomodar uma pessoa. Um desses pequenos quartos era ocupado por Wilson.
Uma noite, ao fim do meu quinto ano na escola e imediatamente após a discussão de que falei, aproveitando um momento em que todos dormiam, levantei-me e, com uma lâmpada na mão, dirigi-me, através de um labirinto de corredores estreitos, do meu ao quarto do meu rival. Havia muito planejara pregar-lhe uma peça de mau gosto, mas, até então, sempre fracassara. Tive pois a idéia de pôr o meu plano em prática e resolvi fazê-lo sentir toda a força da maldade de que estava possuído. Cheguei à porta de seu cubículo e entrei sem fazer ruído, deixando à porta a lâmpada com um abajur. Avancei um passo e escutei o som de sua respiração tranqüila. Convencido de que dormia profundamente, voltei à porta, peguei a lâmpada e aproximei-me novamente da cama. Como os cortinados estavam cerrados, abri-os de leve e lentamente, para a execução de meu plano, mas uma luz viva caiu em cheio sobre o adormecido e ao mesmo tempo meus olhos se detiveram sobre sua fisionomia. Olhei; e um entorpecimento, uma enregelante sensação penetraram instantaneamente todo o meu ser. Meu coração palpitou, os joelhos vacilaram, toda a minha alma foi tomada de um horror intolerável e inexplicável. Arquejando, baixei a lâmpada até quase encostá-la no seu rosto. Seriam... seriam mesmo as feições de William Wilson? Vi, sem dúvida, que eram os meus traços, mas tremia como que tomado de um acesso de febre, imaginando que não o eram. Que haveria pois neles para me confundir a tal ponto? Eu o contemplava e meu cérebro girava em torno de milhares de pensamentos incoerentes. Ele não me aparecia assim - seguramente não parecia tal - nas horas ativas de sua vida acordado. O mesmo nome! Os mesmos traços! A entrada na escola no mesmo dia! E, ainda, essa odiosa e inexplicável imitação de minhas maneiras, andar, voz e costume! Estaria, na verdade, nos limites da possibilidade humana que aquilo que eu via agora fosse o simples resultado desse hábito de imitação sarcástica? Tomado de horror, estremecendo, apaguei a lâmpada, saí silenciosamente do quarto e deixei imediatamente o recinto da velha escola, para nunca mais voltar.
Após um lapso de alguns meses vividos em casa de meus pais, em ociosidade absoluta, fui mandado para o colégio de Eton. Esse breve intervalo fora suficiente para enfraquecer em mim a recordação dos acontecimentos na escola Bransby, ou pelo menos operar uma mudança notável na natureza dos sentimentos que essas lembranças me causavam. A realidade, o lado trágico do drama, não existiu mais. Encontrava agora alguns motivos para duvidar do testemunho de meus sentidos e raramente me lembrava da aventura sem admirar-me de quão longe pode ir a credulidade humana, e sem sorrir da prodigiosa força de imaginação que havia herdado de minha família. E a vida que eu levava em Eton não era de molde a diminuir essa espécie de ceticismo. O turbilhão de loucura em que mergulhei imediatamente e sem reflexão tudo varreu, exceto a lembrança de minhas horas passadas, absorvendo imediatamente todas as impressões sólidas e sérias, não deixando em minha lembrança senão as leviandades de minha existência anterior.
Não tenho, contudo, a intenção de descrever aqui a trajetória de meus infames desregramentos - desregramentos que desafiavam as leis e iludiam a vigilância. Três anos de loucuras, gastos sem proveito, só poderiam ter-me dado hábitos de vício, enraizados, e haviam aumentado, de maneira quase anormal, meu desenvolvimento físico. Um dia, após uma semana inteira de dissipações embrutecedoras, convidei um grupo de estudantes, dos mais dissolutos, para uma orgia secreta em meu quarto.
Reunimo-nos a uma hora avançada da noite, porque a nossa orgia devia prolongar-se religiosamente até a manhã. O vinho corria livremente e outras seduções, mais perigosas, talvez, não haviam sido negligenciadas, tanto que quando o alvorecer empalidecia o céu, no oriente, nosso delírio e nossas extravagâncias tinham atingido o auge. Furiosamente exaltado pelas cartas e pela bebida, insistia em fazer um brinde estranhamente indecente, quando minha atenção foi subitamente distraída por uma porta que se abria violentamente e pela voz precipitada de um criado. Disse que uma pessoa, que parecia ter muita pressa, pedia para falar comigo no vestíbulo.
Loucamente excitado pelo vinho, essa interrupção causou-me mais prazer do que surpresa. Precipitei-me, cambaleando, e, após alguns passos, encontrei-me no vestíbulo da casa. Nessa sala, baixa e estreita, não havia nenhuma lâmpada e a única luz que ali entrava era a do alvorecer, muito fraca, que se infiltrava através da janela semicircular. Pisando na soleira, distingui um rapaz pouco mais ou menos da minha estatura, vestindo um roupão de casimira branca, talhado à moda do dia, como o que eu usava naquele momento. A luz fraca me permitiu ver tudo isso; mas os traços do rosto, não os pude distinguir. Mal entrei, ele se precipitou para mim e, segurando-me o braço com um gesto imperativo de impaciência, murmurou em meu ouvido as palavras:
- William Wilson!
Num segundo, tornei-me absolutamente sóbrio.
Havia na maneira do estranho, no tremor nervoso de seu dedo, que erguera entre meus olhos e a luz, qualquer coisa que me causou um espanto completo: mas não era isso o que me emocionara de maneira tão violenta, e sim a importância, a solenidade da admoestação contida na palavra singular, baixa, sibilante, e, acima de tudo, o caráter, o tom, a clave dessas poucas sílabas, simples, familiares e, contudo, misteriosamente sussurradas, que vieram, com mil recordações acumuladas dos dias passados, abater-se em minha alma como uma descarga elétrica. Antes que eu pudesse recobrar os sentidos, ele havia desaparecido.
Embora o fato produzisse sem dúvida um efeito muito vivo sobre minha imaginação desregrada, esse efeito, tão vivo, contudo, se foi em breve esvaindo. Na verdade, durante várias semanas, vivi entregue a investigações mais sérias, ou envolvido numa nuvem de mórbida meditação. Não tentava ocultar a mim mesmo a identidade da singular criatura que se imiscuía de maneira tão obstinada em minha vida e me fatigava com seus conselhos oficiosos. Porém, quem era? Quem era esse Wilson? E de onde vinha? Qual o seu objetivo? Sobre nenhum desses pontos consegui obter resposta satisfatória - e constatei somente, em relação a ele, que um acidente súbito, em sua família, o fizera deixar a escola do Doutor Bransby na tarde do dia em que eu fugira. Mas, depois de algum tempo, deixei de pensar nisso e minha atenção foi inteiramente absorvida pela partida, projetada, para Oxford. Ali, em breve - a vaidade pródiga de meus pais permitindo-me levar um alto padrão e entregar-me à vontade ao luxo, já tão do meu gosto -, vim a rivalizar em prodigalidade com os mais orgulhosos herdeiros dos mais ricos condados da Grã-Bretanha. Estimulado ao vício por semelhantes meios, minha natureza explodiu em breve com um duplo ardor e na louca embriaguez de minhas devassidões calquei aos pés os vulgares entraves da decência. Mas seria absurdo demorar aqui em detalhes de minhas loucuras. Basta dizer que ultrapassei Herodes em dissipações e que, dando um nome a uma multidão de novos desvarios, acrescentei um copioso apêndice ao longo catálogo dos vícios que reinavam então na universidade mais dissoluta da Europa.
Custa a acreditar que eu tivesse decaído a tal ponto, de minha posição de nobreza, procurando familiarizar-me com os mais vis artifícios do jogador de profissão e me tornasse um adepto dessa ciência desprezível, que a praticasse habilmente com o pretexto de aumentar meu rendimento já enorme, à custa de companheiros cujo espírito era mais fraco. Mas foi o que aconteceu. E a própria enormidade desse atentado contra os sentimentos de dignidade e honra era, evidentemente, a principal, se não a única razão da minha impunidade. Quem, pois, entre meus mais devassos camaradas, não teria contestado ao mais evidente testemunho de seus próprios sentidos, a desconfiar de semelhante conduta da parte do alegre, do franco, generoso William Wilson - o mais nobre, o mais liberal dos companheiros de Oxford -, aquele cujas loucuras, diziam meus parasitas, eram apenas as loucuras de uma mocidade e de uma imaginação sem freio, cujos erros não eram senão inimitáveis caprichos, e os vícios mais negros, uma descuidada e soberba extravagância?
Havia dois anos que eu vivia dessa maneira, quando chegou à universidade um jovem de nobreza recente, um parvenu, chamado Glendinning - rico, diziam, como Herodes Ático e cuja riqueza fora também facilmente adquirida. Descobri bem depressa que era de inteligência fraca e, naturalmente, marquei-o como possível vítima de meus talentos. Convidava-o freqüentemente a jogar e deixava-o ganhar somas consideráveis, a fim de prendê-lo mais eficazmente na armadilha. Finalmente, com o meu plano bem estabelecido (procurei-o na intenção inabalável de que esse encontro seria decisivo), no apartamento de um dos nossos camaradas, Preston, íntimo igualmente de ambos, porém, que - faço-lhe essa justiça - não tinha a menor desconfiança quanto ao meu desígnio. A fim de melhor colorir o acontecimento, tive o cuidado de convidar um grupo de oito ou dez pessoas, tendo o mais rigoroso cuidado de fazer com que o aparecimento das cartas parecesse inteiramente acidental e não se fizesse senão sob proposta daquele a quem eu queria lograr. Para resumir tão vil passagem, digo que não negligenciei nenhuma das infames astúcias praticadas da maneira mais banal em tais ocasiões e é de admirar que ainda existam pessoas bastante ingênuas a ponto de caírem como suas vítimas.
Prolongamos muito a nossa vigília, e já era tarde da noite, quando, afinal, consegui fazer de Glendinning meu único adversário. O jogo era o meu favorito: o écarté. Os outros presentes, interessados pelas proporções de nosso jogo, tinham deixado suas cartas e se reuniam em torno de nós. como espectadores. O nosso parvenu, que, durante a primeira parte da noite, eu induzira a beber fartamente, embaralhava, dava as cartas agora de maneira nervosa, estranha, na qual, pensava eu, a embriaguez influía de certo modo, porém não explicava inteiramente. Em muito pouco tempo já se tornara meu devedor de uma grande soma, quando, depois de beber um grande copo de vinho do Porto, fez justamente o que eu havia previsto friamente: propôs que dobrássemos a nossa parada, já absurdamente elevada. Com uma hábil afetação de relutância, e somente depois que minhas recusas repetidas lhe haviam provocado algumas palavras ásperas, que deram ao meu consentimento um tom ofendido, acedi finalmente. O resultado foi o que devia ser: a presa caíra irremediavelmente na armadilha e em menos de uma hora quadruplicara a dívida. Havia algum tempo, seu rosto começara a perder o rubor produzido pelo vinho, mas agora eu percebia, atônito, que sua palidez era verdadeiramente terrível. Digo atônito, porque tomara sobre Glendinning informações minuciosas: davam-no como sendo imensamente rico e as somas que ele perdera até então, embora realmente vastas, não podiam - pelo menos eu supunha - preocupá-lo muito seriamente e ainda menos afetá-lo de maneira a tal ponto violenta. A idéia que se apresentou mais naturalmente ao meu espírito foi que ele ficara perturbado pelo vinho que bebera e, antes para salvaguardar o meu caráter aos olhos de meus camaradas do que por um motivo de desinteresse, ia insistir peremptoriamente para interromper o jogo, quando algumas palavras pronunciadas ao meu lado, entre as pessoas presentes e uma exclamação de Glendinning, demonstrando o mais completo desespero, fizeram-me compreender que eu o levara à ruína total, em condições que, tornando-o objeto da piedade de todos, deveriam tê-lo protegido, mesmo contra os maus ofícios de um demônio.
Que atitude deveria ter sido então a minha, é difícil dizer. A lastimável situação de minha vítima lançara sobre nós um ar de tristeza e constrangimento. Por alguns minutos reinou um silêncio profundo durante o qual eu sentia, malgrado meu, o rosto a formigar, sob os olhares ardentes de desprezo e censura que me eram dirigidos pelos menos endurecidos do grupo. Confessarei, mesmo, que meu coração sentiu-se instantaneamente aliviado do intolerável peso da angústia, pela súbita e extraordinária interrupção que sobreveio. As largas e pesadas portas se escancararam subitamente, com uma impetuosidade tão vigorosa e violenta, que todas as velas se apagaram como por encanto. Mesmo no escuro ainda nos foi possível notar que um estranho entrara; um homem mais ou menos da minha estatura, apertadamente envolvido numa capa. Contudo, agora, as trevas eram completas e podíamos apenas sentir que ele estava entre nós. Antes que qualquer dos presentes voltasse a si do extremo espanto em que nos lançara aquele gesto de violência, ouvimos a voz do intruso:
- Senhores - disse ele, numa voz muito baixa, mas distinta, inesquecível, que atingiu a medula de meus ossos -, senhores, nao procuro desculpar a minha conduta, por que, agindo assim, não faço mais do que cumprir um dever. Sem dúvida, não estão informados sobre o verdadeiro caráter da pessoa que ganhou esta noite uma soma enorme no écarté, tendo como parceiro Lorde Glendinning. Vou assim propor-lhes um meio rápido e decisivo de conseguir essas importantíssimas informações. Examinem, rogo-lhes, sem pressa, o forro do punho de sua manga esquerda e os pacotinhos que serão encontrados nas algibeiras suficientemente vastas de seu roupão bordado.
Enquanto o estranho falava, o silêncio era tão profundo, que se teria ouvido um alfinete cair sobre o tapete. Terminando, ele partiu de repente, tão bruscamente como entrara. Poderia descrever a minha impressão? Será preciso dizer que senti todos os horrores dos danados, no inferno? Decerto, tive pouco tempo para reflexão. Vários braços me agarraram com violência, reacenderam-se imediatamente as luzes. Revistaram-me: no forro de minha manga, encontraram todas as figuras essenciais do écarté e, nos bolsos do meu roupão, um certo número de baralhos exatamente semelhantes aos que usávamos em nossas noitadas, com a única exceção de que os meus eram daqueles chamados, tecnicamente, arrondées: as cartas figuradas ligeiramente convexas nas extremidades mais estreitas e as sem figuras também imperceptivelmente convexas, nos lados mais largos. Graças a essa marcação, a vítima quando corta o baralho ao comprido, como é habitual, dá, inevitavelmente, uma carta figurada ao adversário, ao passo que o trapaceiro, cortando no sentido da largura, jamais dará ao outro algo que lhe possa trazer vantagem.
Uma tempestade de revolta me afetaria menos do que o silencioso desdém e a calma sarcástica com que receberam essa descoberta.
- Sr. Wilson - disse nosso anfitrião, baixando-se para apanhar sob meus pés uma magnífica capa de pele rara -, Sr. Wilson, isto lhe pertence.
Fazia frio e, ao sair de meu quarto, eu pusera sobre a roupa que vestira de manhã uma capa que tirei, ao chegar ao local do jogo.
- Imagino - disse olhando as dobras do manto com um sorriso amargo - que será supérfluo procurar aqui novas provas de sua habilidade. Realmente, estamos fartos. Espero que compreenda a necessidade de deixar Oxford e, de qualquer modo, de sair imediatamente de meus aposentos.
Aviltado, humilhado até a poeira, como estava no momento, é provável que tivesse castigado essa linguagem insultante com violência imediata, se toda a minha atenção não estivesse, nesse momento, detida por um fato dos mais surpreendentes. A capa que eu trouxera era de uma pelica superior - de uma raridade e de um preço tão extravagantes, que não me atrevo a dizer. O modelo também era de minha invenção, pois nessas questões frívolas eu era exigente e levava o dandismo às raias do absurdo. Por isso, quando Preston me entregou o que apanhara no chão, junto à porta da sala - com um espanto quase terror -, percebi que já tinha a minha capa sobre o braço onde a colocara sem prestar atenção, e aquela que agora me davam era uma exata reprodução em todos os detalhes da minha. A singular criatura que me denunciara de maneira tão desastrosa estava, lembro-me bem, envolta numa capa e nenhum dos presentes, exceto eu, usava capa naquela ocasião. Conservei porém uma certa presença de espírito e recebi a capa que Preston me oferecia, coloquei-a - sem que ninguém prestasse atenção - sobre a minha; saí da sala com um desafio ameaçador no olhar e nessa manhã mesmo, antes do alvorecer, fugi precipitadamente de Oxford, em viagem pelo continente, angustiado de horror e vergonha.
Fugi em vão. Meu destino maldito me perseguiu, triunfante, provando-me que seu misterioso poder apenas começava. Mal chegara a Paris, tive outra prova do interesse detestável que esse Wilson tomava pelos meus negócios. Os anos passaram, e não tive trégua. Miserável! Em Roma, com que importuna obsequiosidade, com que ternura, o espectro se interpôs entre mim e a minha ambição! Em Viena... em Berlim!... em Moscou! Na verdade, em que lugar não tinha eu uma razão amarga para maldizê-lo do íntimo do meu coração? Tomado de pânico, fugi enfim de sua impenetrável tirania, como de uma peste até o fim do mundo, fugi, e fugi em vão.
E sempre, sempre interrogando secretamente minha alma, perguntava a mim mesmo: "Quem é ele? De onde vem? Qual o seu objetivo?" Mas não encontrava resposta. E analisava então com um cuidado minucioso as formas, o método e os característicos de sua insolente vigilância. Mas aí, ainda, não encontrava muita coisa que pudesse servir de base a uma conjetura. Era verdadeiramente notável o fato de que das inúmeras vezes em que ele atravessara no meu caminho, recentemente, jamais o fez senão para frustrar planos ou derrotar ações que, se bem sucedidas, teriam redundado em amarga decepção. Pobre justificativa, na verdade, para uma autoridade tão imperiosamente usurpada! Pobre indenização para esses direitos naturais de livre-arbítrio tão obstinada e ofensivamente negados!
Fui obrigado a notar que meu algoz, havia longo tempo, mesmo exercendo escrupulosamente e com hábil destreza a mania de se vestir da mesma maneira que eu, cada vez que interferira na minha vontade, fizera tudo de maneira que eu não pudesse ver o seu rosto. Fosse lá quem fosse esse maldito Wilson, sem dúvida, semelhante mistério era o cúmulo da afetação e da tolice. Poderia ele supor um instante que, como meu conselheiro de Eton, destruidor de minha honra em Oxford, aquele que frustrou minha ambição em Roma, minha vingança em Paris, meu amor apaixonado em Nápoles e, o que ele chamava, erroneamente, a minha avareza, no Egito - nesse ser, meu grande inimigo e meu gênio mau, eu não reconhecia o William Wilson dos meus anos de colégio, o homônimo, o camarada, o rival execrado e temido do colégio Bransby? Impossível! Mas deixem-me descrever a terrível cena final do drama.
Até então, eu me submetera sem reação ao seu imperioso domínio. O sentimento de profundo respeito com o qual me acostumara a considerar o caráter elevado, a sabedoria majestosa, a onipresença e onipotência aparentes de Wilson, acrescentados a uma certa sensação de terror que me inspiravam alguns outros traços de sua natureza e determinados privilégios, tinham criado em mim a idéia de minha fraqueza absoluta, de minha impotência, me haviam aconselhado uma submissão sem reservas, embora cheia de amargura e de repugnância, à sua ditadura arbitrária. Mas, nesses últimos tempos, abandonara-me inteiramente ao vinho e sua influência exasperante sobre meu temperamento hereditário tornava-me cada vez mais relutante a todo controle. Comecei pois a murmurar, a hesitar, a resistir. E seria simplesmente minha imaginação que me induzia a crer que a obstinação de meu algoz diminuiria em razão da minha própria firmeza? É possível, mas em todo caso começava a sentir a inspiração de uma esperança ardente, e acabei nutrindo, no mais secreto de meus pensamentos, a sombria, a desesperada resolução de libertar-me dessa escravidão.
Foi em Roma, durante o carnaval de 18...; encontrava-me num baile à fantasia, no palácio do Duque Di Broglio, de Nápoles. Abusara da bebida, além do habitual, e a atmosfera sufocante dos salões apinhados irritava-me de maneira insuportável. A dificuldade de abrir caminho através da multidão contribuiu ainda mais para exasperar o meu humor, porque eu procurava ansiosamente (não direi com que motivo indigno) a jovem, alegre e bela esposa do velho e extravagante Di Broglio. Com uma confiança bastante imprudente, ela me revelara o segredo da fantasia com que iria ao baile e, como eu acabava de avistá-la de longe, apressei-me para alcançá-la. Nesse momento, senti uma mão pousar de leve em meu ombro - e depois esse inesquecível, profundo e maldito sussurro em meu ouvido!
Tomado de cólera e frenesi, voltei-me bruscamente para aquele que ousara me perturbar e segurei-o com violência pelo colete. Wilson vestia, conforme já esperava, um traje absolutamente semelhante ao meu: capa espanhola de veludo azul, presa por um cinto carmesim do qual pendia uma espada. Uma máscara de seda negra cobria-lhe inteiramente o rosto.
- Miserável! - exclamei com voz rouca de cólera, e cada sílaba que me escapava era como um combustível acrescentado ao fogo de minha ira. - Miserável! Impostor! Vilão maldito! Não seguirás a minha pista... não me atormentarás até a morte! Segue-me, ou apunhalo-te aí onde estás!
E abri caminho, do salão de baile, para uma pequena antecâmara vizinha, arrastando-o irresistivelmente comigo.
Entrando, atirei-o com fúria para longe de mim. Ele cambaleou, de encontro à parede. Fechei a porta, com uma imprecação, e ordenei-lhe que desembainhasse a espada. Wilson hesitou um segundo; depois, com um leve suspiro, tirou silenciosamente a arma e se pôs em guarda.
O combate foi rápido. Eu estava exasperado, sentia desvarios de toda a espécie e, num único braço, a energia e o poder de uma multidão. Em alguns segundos, dominei-o pela força, contra o lambril, e ali, tendo-o à minha mercê, mergulhei várias vezes, golpe após golpe, a espada em seu peito, com uma ferocidade de bruto.
Nesse momento, alguém tentou abrir a porta. Apressei-me em evitar uma intromissão importuna e voltei-me imediatamente para meu adversário que expirava. Porém. que ser humano poderá traduzir suficientemente o espanto, o horror que se apoderaram de mim, ante o espetáculo que se apresentou aos meus olhos? O curto instante, durante o qual me desviara, fora suficiente para produzir, aparentemente, uma mudança material nas disposições do outro extremo da sala. Um vasto espelho - em minha perturbação pareceu-me assim, a princípio - erguia-se no ponto onde antes nada vira; e, enquanto me dirigia tomado de horror, para esse espelho, minha própria imagem, mas com o rosto pálido e manchado de sangue, adiantou-se ao meu encontro, com um passo fraco e vacilante.
Foi o que me pareceu, repito, mas não era. Era meu adversário, Wilson, que diante de mim se contorcia em agonia. Sua máscara e capa jaziam sobre o soalho, no ponto onde ele as lançara. Não havia um fio de sua roupa - nem uma linha em toda a sua figura tão característica e tão singular - que não fossem meus: era o absoluto na identidade!
Era Wilson, mas Wilson sem mais sussurrar agora as palavras, tanto que teria sido possível acreditar que eu próprio falava, quando ele me disse:
- Venceste e eu me rendo. Mas, de agora em diante, também estás morto... morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu existias... e vê em minha morte, vê por esta imagem, que é a tua, como assassinaste absolutamente a ti mesmo.
O GATO PRETO (EDGAR ALLAN POE)
Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã morro e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas conseqüências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruíram.
No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror - mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum - uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.
Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.
Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato.
Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.
Pluto - assim se chamava o gato - era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.
Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento - enrubesço ao confessá-lo - sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim - que outro mal pode se comparar ao álcool? - e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor.
Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser.Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.
Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão - dissipados já os vapores de minha orgia noturna - , experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera.
Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano - uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado - um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.
Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de "fogo!". As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.
Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito - entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo - coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, As palavras "estranho!", "singular!", bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal.
Logo que vi tal aparição - pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa - , o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via.
Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.
Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme - tão grande quanto Pluto - e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo o corpo - e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.
Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes.
Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse - detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher.
De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que - não sei como nem por quê - seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos - muito gradativamente - , passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste.
Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.
No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pemas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo - apresso-me a confessá-lo - , pelo pavor extremo que o animal me despertava.
Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar - sim, mesmo nesta cela de criminoso - , quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível - que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa -, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer... E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!
Na verdade, naquele momento eu era um miserável - um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído... uma besta-fera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso - encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim - pousado eternamente sobre o meu coração!
Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros - os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade - e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher - pobre dela! - não se queixava nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.
Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar, O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.
Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.
Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de idéia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.
Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita.
E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: "Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão".
O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite - e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranqüila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.
Transcorreram o segundo e o terceiro dia - e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.
No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência.
- Senhores - disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada - , é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída... (Quase não sabia o que dizia, em meu insopitável desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes - os senhores já se vão? - , estas paredes são de grande solidez.
Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração.
Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.
Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes.
Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco.
Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!
No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror - mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum - uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.
Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.
Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato.
Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.
Pluto - assim se chamava o gato - era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.
Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento - enrubesço ao confessá-lo - sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim - que outro mal pode se comparar ao álcool? - e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor.
Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser.Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.
Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão - dissipados já os vapores de minha orgia noturna - , experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera.
Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano - uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado - um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.
Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de "fogo!". As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.
Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito - entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo - coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, As palavras "estranho!", "singular!", bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal.
Logo que vi tal aparição - pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa - , o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via.
Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.
Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme - tão grande quanto Pluto - e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo o corpo - e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.
Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes.
Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse - detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher.
De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que - não sei como nem por quê - seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos - muito gradativamente - , passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste.
Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.
No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pemas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo - apresso-me a confessá-lo - , pelo pavor extremo que o animal me despertava.
Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar - sim, mesmo nesta cela de criminoso - , quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível - que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa -, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer... E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!
Na verdade, naquele momento eu era um miserável - um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído... uma besta-fera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso - encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim - pousado eternamente sobre o meu coração!
Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros - os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade - e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher - pobre dela! - não se queixava nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.
Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar, O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.
Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.
Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de idéia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.
Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita.
E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: "Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão".
O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite - e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranqüila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.
Transcorreram o segundo e o terceiro dia - e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.
No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência.
- Senhores - disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada - , é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída... (Quase não sabia o que dizia, em meu insopitável desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes - os senhores já se vão? - , estas paredes são de grande solidez.
Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração.
Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.
Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes.
Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco.
Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!
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